Em qualquer cultura, época e local nos quais o ministério da pregação é exercido com autenticidade, ali se encontra uma igreja genuína, pois a pregação bíblica é uma das marcas da verdadeira igreja de Cristo. A exposição das Escrituras Sagradas sempre foi indispensável na liturgia e adoração cristã, mormente na igreja protestante.

A ministração da Palavra de Deus nos púlpitos não é apenas um alvitre, mas um imperativo que brota da própria revelação divina inspirada e suficiente. De fato, a Bíblia ordena a exposição do seu conteúdo por aqueles que foram chamados para tal ofício e uma reverência e aquiescência profundas e sinceras por parte da comunidade que recebe o ensinamento escriturístico. A exemplo disso, pode-se ler na própria Escritura o apóstolo Paulo encorajando tal prática quando exorta Timóteo, dizendo: “Prega a palavra, insta, quer seja oportuno, quer não, corrige, repreende, exorta com toda a longanimidade e doutrina” (2 Tm 4.2).[1]

As igrejas hodiernas, apesar do perceptível abandono por boa parte delas, ainda prezam, em suas ordens litúrgicas, pela entrega do sermão ou estudo bíblico, considerando-o como parte imprescindível da adoração pública. Dominicalmente, a Bíblia é proclamada nas igrejas de fé protestante e, regularmente, em cultos ou reuniões ordinárias e semanais.

Comumente, há uma atenção desproporcional dada aos dois testamentos da Bíblia. É notório o uso recorrente do segundo testamento como texto para a pregação ou ensino doutrinal nos expedientes de adoração comunitária. Os Evangelhos e epístolas, em especial as paulinas, são acionados assiduamente por pastores, presbíteros, diáconos e professores que labutam no ministério da Palavra. Percebe-se como o uso do Novo Testamento para o ensino eclesiástico é preferido em detrimento do Antigo.

A desproporcionalidade denunciada acima é balizada no uso exacerbado do Novo Testamento e no uso diminuto do Antigo Testamento para pregações e estudos bíblicos. Com exceções de alguns livros e passagens do primeiro testamento, a referida porção das Escrituras Sagradas é quase inusual nos púlpitos das igrejas. É comum expositores recorrerem ao livro de Salmos ou Provérbios, geralmente tirando o texto do seu contexto, ou passagens dos profetas maiores, como Isaías, para falar de Jesus Cristo, do nascimento ou do Seu perfeito Sacrifício. A Lei, as narrativas e os profetas são praticamente desconhecidos de ouvintes contemporâneos, pois nunca ouviram uma exposição de qualquer livro ou trecho referido, caracterizando-se um “Marcionismo funcional”[2].

Não é segredo que o Antigo Testamento é como um tesouro perdido na igreja atual. Comentários tais como ‘na minha experiência o Antigo Testamento era como um livro fechado’ indicam uma tendência. W.A.Criswell dizia que o Antigo Testamento ‘talvez seja a área mais negligenciada da Bíblia na pregação moderna’ e que, quando se emprega o Antigo Testamento, ‘muitas vezes é apenas o texto para algum tratamento tópico que logo foge do seu contexto’. Gleason Archer comenta: ‘É curioso observar e difícil entender a relativa negligência do Antigo Testamento por parte dos cristãos de nossos dias, enquanto domingo após domingo o frequentador mediano de igreja evangélica mediana, que crê na Bíblia, não escuta mensagem alguma da Escrituras hebraicas. ’ Ele passa a perguntar: ‘Como um pastor cristão pode esperar alimentar o rebanho numa dieta espiritual equilibrada se negligencia, completamente, os 39 livros das Escrituras Sagradas dos quais Cristo e todos os autores do Novo Testamento receberam seu próprio alimento espiritual’[3]

De fato, são poucos os mestres da Palavra que se enveredam nessa empreitada bíblica, isto é, em interpretar, explicar, ensinar e aplicar livros e passagens do Antigo Testamento. Sobre isso,

o douto Wright comenta:

E, para ser honesto, o Antigo Testamento é uma coleção difícil de livros. Há muita história, e não gostamos de história, sobretudo quando ela está cheia de nomes estranhos. Há muita guerra e violência, e também não gostamos disso. E ainda tem um monte de questões cerimoniais esquisitas, sobre sacerdotes e sacrifícios, alimentos puros e impuros, bem como leis rígidas com punições terríveis. Como tais costumes antigos teriam condições de se aplicar a nós hoje? E tudo parece nada justo com o restante do mundo. Uma vez que tudo isso aconteceu antes de Jesus, não seria agora desatualizado e irrelevante? É claro que existem algumas boas histórias, sobre as quais é possível pregar uma mensagem clara e simples. Além disso, alguns dos salmos podem servir de grande incentivo para os fiéis [sic]. Tirando isso, porém, pregar um sermão ou ensinar uma lição da escola dominical com base no Antigo Testamento é cansativo demais para o pastor ou professor de estudos bíblicos, além de confuso demais para as pessoas. É muito mais fácil ficar com o que conhecemos: o Novo Testamento.[4]

Então, diante dessa realidade, em muitos púlpitos, cultos de doutrina e classes de Escola Bíblica Dominical, apesar da sua colocação no cânon bíblico, o Antigo Testamento parece muito mais como um anexo ou apêndice da revelação de Deus para o seu povo, especificamente para os cristãos da presente época. É nesse contexto que se faz necessário estudar, pregar e ensinar o Antigo Testamento.

O pensamento de Kaiser Jr corrobora o que vem sendo externado:

O Antigo Testamento precisa praticamente da mesma defesa de um leão! No entanto, ele é claramente ignorado e frequentemente negligenciado no ministério de pregação e ensino da igreja. Essa negligência é ainda mais frustrante quando as reivindicações e os direitos do Antigo Testamento de ser recebido como a poderosa Palavra de Deus são tão fortes quanto os do Novo Testamento.[5]

Partindo dessa realidade, antes de abordar questões sobre gênero literário, interpretação e pregação expositiva, defende-se inicialmente a urgência de pregar e ensinar todo o Antigo Testamento, tornando-o conhecido de cada cristão hodierno, para que possa vivenciar a suficiência e excelência do primeiro testamento bíblico. Para alcançar tal objetivo, passa-se a expor argumentos em defesa do ensino de Moisés, os profetas e os salmos.[6], pois “se negligenciamos esses livros em nossa pregação estaremos relegando nossas congregações à superficialidade e mediocridade teológicas.”[7]

Razões para se pregar o Antigo Testamento nos dias atuais

Há uma série de razões que expressam o quanto é imprescindível expor todos os livros e gêneros literários do Antigo Testamento. Ressalta-se que esses argumentos brotam da própria Escritura Sagrada, assim, tornando-os verdades absolutas.

O Antigo Testamento é Escritura Sagrada

Para muitos, é um argumento completamente simplista, pois dificilmente um cristão de fé protestante negaria tal verdade.[8] Todavia, como já advogado anteriormente, o uso do Antigo Testamento como texto para pregações e estudos bíblicos na igreja moderna é irrisório, colocado à subcategoria no quesito de Palavra de Deus ou Escritura Sagrada. Tacitamente, é estimado, em muitos sermões e aulas bíblicas, como um aporte histórico para a verdadeira Revelação Divina, que seria unicamente o Novo Testamento.

No entanto, essa premissa conduz à discussão em questão, ratificando que o Antigo Testamento é necessário para a pregação e o ensino na eclesiologia moderna. Púlpitos e outros expedientes de ministração da Bíblia não podem se eximir em proclamar o Antigo Testamento, por ser esse, assim como o Novo Testamento, Palavra de Deus.

O primeiro argumento probatório são passagens no Novo Testamento que declaram que o Primeiro Testamento é Escritura Sagrada, Revelação e inspirado pelo próprio Deus. Essas referências neotestamentárias desarmam qualquer arrazoado falacioso de que os trinta e nove livros são apenas uma produção de homens como resultado de sua fé, como declarou enfaticamente a Teologia Liberal.

Um texto clássico é 2 Timóteo 3.16, que diz: “Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça,”[9], no qual o apóstolo Paulo apresenta Deus como autor, além da necessidade do Antigo Testamento para os cristãos de todas as épocas.

Kaiser faz o seguinte comentário dessa passagem, quando afirma que o Velho Testamento é a poderosa Palavra de Deus:

É preciso recordar que as ‘Escrituras’ (grego, grafe, ‘escrito’) que estavam disponíveis a Timóteo quando Paulo lhe escreveu eram os livros do Antigo Testamento. Todo o Antigo Testamento foi “inspirado por Deus”. Ele é um produto de Deus. Por isso, se desejarmos ter uma apresentação plena e equilibrada de toda a verdade de Deus, é absolutamente essencial que a nossa pregação e o nosso conhecimento incluam o Antigo Testamento. Além disso, o Antigo Testamento é útil, pois tem pelo menos quatro funções: (1) ensinar, (2) redarguir, (3) corrigir, e (4) instruir em justiça. A isso Paulo acrescenta em 2 Timóteo 3.15, que o Antigo Testamento ‘pode [nos] fazer sábios para salvação pela fé que há em Cristo Jesus’. Poucos pensam que um bom resultado, como a salvação pessoal de alguém, pela fé em Jesus Cristo, viria do ensinamento e pregação do Antigo Testamento, mas o apóstolo Paulo ensinou que isso podia acontecer – e ensinou isso sob a inspiração do Senhor Soberano.[10]

Na sequência, uma segunda passagem bíblica do Novo Testamento que apresenta e protege o Antigo Testamento enquanto Palavra de Deus é 2 Pedro 1.20-21, no qual se lê:

Temos, assim, tanto mais confirmada a palavra profética, e fazeis bem em atendê-la, como a uma candeia que brilha em lugar tenebroso, até que o dia clareie e a estrela da alva nasça em vosso coração, sabendo, primeiramente, isto: que nenhuma profecia da Escritura provém de particular elucidação; porque nunca jamais qualquer profecia foi dada por vontade humana; entretanto, homens santos falaram da parte de Deus, movidos pelo Espírito Santo.[11]

É evidente que o apóstolo Pedro aqui se referiu ao Antigo Testamento como sendo palavra vinda da parte do próprio Deus e que a igreja do primeiro século deveria crer e se alicerçar unicamente nessa revelação, evitando basear a sua fé em experiências subjetivistas ou em doutrinas heterodoxas criadas e ensinadas por homens que se passavam por cristãos.

Diante de tais evidências internas, tem-se por doutrina que o Antigo Testamento é Palavra de Deus inspirada e autoritativa para o povo da antiga e da nova aliança. De fato, a igreja contemporânea, no que se refere ao Primeiro Testamento, não possui somente um calhamaço histórico ou um compêndio de apoio para as mensagens ministradas a partir do Novo Testamento, mas a Palavra de Deus.

Ainda sobre o fato de o Antigo Testamento ser Palavra de Deus, deve-se rememorar que esse faz parte do cânon bíblico. Como já anunciado anteriormente, os apóstolos e a igreja primitiva se utilizaram do Primeiro Testamento pelo fato de ser inspirado por Deus e ser canônico tanto quanto o Novo Testamento. Atualmente, percebe-se o seu uso, quando referido, como um apêndice na ordem inversa ou um preâmbulo para algo maior.

O Antigo Testamento foi usado pelos apóstolos e escritores do Novo Testamento

Um segundo argumento é o fato de o Antigo Testamento ser usado como autoridade exclusiva na igreja primitiva.  Tanto Pedro como Paulo, outros apóstolos, como Mateus, e pessoas do círculo apostólico fazem veementes referências a livros, passagens e personagens do primeiro testamento. Essas menções têm a sua origem nos livros canônicos. Citações e alusões do Antigo Testamento no Novo Testamento têm demonstrado claramente as obras literárias que são tidas como Palavra de Deus.

A prevalência de tais citações e alusões mostra que o cristianismo primitivo estava arraigado no judaísmo, e que o AT correspondia às Escrituras canônicas dos primeiros cristãos. Da mesma maneira que baseamos nossas mensagens nos dois Testamentos, eles fundamentam as deles no Antigo Testamento. As fórmulas que introduzem muitas das citações mostram o elevado grau de inspiração atribuído ao AT. Além daquelas como ‘Escritura/ a Lei/ Moisés / Isaías diz’, também encontramos ‘Deus/ o Senhor / o Espírito diz’. Claramente os cristãos primitivos acreditavam que o AT constituía as próprias palavras de Deus. As postulações mais conhecidas estão em 2 Timóteo 3.16 (‘Toda a Escritura é divinamente inspirada’) e 2 Pedro 1.21 (‘[os profetas] falaram da parte de Deus, conduzidos pelo Espírito Santo’)[12]

Nos Evangelhos, tanto o apóstolo Mateus quanto João fazem referência aos livros proféticos e também ao saltério. O evangelista Mateus, já nos três primeiros capítulos do seu evangelho, cita dois profetas do Antigo Testamento, que são Miqueias 5:2 (Mt 2.5,6) e Isaías 40:3 (Mt 3.3). Esse mesmo evangelista também cita o profeta Oséias 11:1 (Mt 2.15).

Um número expressivo de comentaristas afirma que João, em 19.36, faz referência tipológica ao Messias, que se encontra no livro de Êxodo, Números e Salmos. João também, inspirado por Deus, no livro de Apocalipse (2.20) faz menção, de modo figurativo, à Jezabel, uma personagem do livro de 1 Reis (16.31). Pedro, por exemplo, quando na festa de Pentecoste, depois de ficar cheio do Espírito Santo, começa a pregar um sermão que, de acordo com o livro de Atos, resultou num “acréscimo naquele dia de quase três mil pessoas” (At 2.40). Interessante é que o apóstolo usa três referências do Antigo Testamento, exatamente dos livros canônicos: Joel 2.28-32, Salmo 16.8-11 e 110.1. Em suas cartas, Pedro também usa os livros canônicos. Ele cita Levítico (1 Pe 1.16), Isaías (1 Pe 2.6), Provérbios (1 Pe 4.8). Além de citar nas suas duas cartas personagens como Noé, Sara, Abraão, Ló e Balaão.

O apóstolo Paulo, nos seus escritos, lança mão de muitos livros do Antigo Testamento. Como exemplo, por causa da quantidade de documentos escritos por ele, duas cartas são suficientes para comprovar tal premissa. Na sua segunda carta à Igreja de Corinto, o apóstolo aos gentios cita diretamente passagens do livro de Êxodo (2 Co 8.15), Isaías 49.8 (1 Co 6:2), Levítico (26.12), Ezequiel (37.27) e 2 Samuel 7.14(2 Co 6:16-18). Já na sua epístola às igrejas da Galácia, novamente se lê o apóstolo Paulo fazendo referências diretas ao Antigo Testamento. Ele usa o livro de Gênesis (15.6), Deuteronômio (27.26) e Habacuque 2.4 (Gl 3:6-14).

Outros escritores do Novo Testamento, como Lucas, Tiago, o autor de Hebreus e Judas fazem citações de passagens e personagens do Antigo Testamento.

Como argumentado acima, o colégio apostólico usou o Antigo Testamento como sua Bíblia. De fato, no Novo Testamento são encontradas, entre citações diretas, alusões e ecos, mais de milhares de referências ao primeiro Testamento. Por exemplo, sobre uso o massivo de alusões,

G.K. Beale elucida:

Diferentemente do que ocorre no caso das citações, o debate acerca da definição de alusão e dos critérios para identifica-la é mais intenso. Por conseguinte, os comentaristas divergem em relação ao número de alusões no NT. A contagem varia entre cerca de 600 a 1.650 alusões e mesmo até 4.100. No livro de Apocalipse, por exemplo, em que não há citações formais o número das alusões varia de 394 (UBS) a 635 (NA), chegando a 1.000.[13]

O não uso do Antigo Testamento no ministério da pregação por pastores e obreiros, de modo geral, vai na contramão do ministério de pregação dos apóstolos e escritores do Novo Testamento. Tal descuido é uma afronta à Palavra de Deus.

O Antigo Testamento fala de Cristo

Walter Kaiser Jr, falando sobre algumas teorias que levam o Antigo Testamento ser um problema para hoje, descreve uma delas:

Outro esforço para solucionar o problema da continuidade e da descontinuidade entre os testamentos é o que atribui ao primeiro testamento apenas um papel providencial para preparação do segundo. Embora as palavras e os eventos que são registrados no Antigo Testamento não sejam dirigidos à igreja ou qualquer pessoa nas épocas posteriores, estas mesmas palavras e eventos preparam o terreno para a Vinda de Cristo, e sua verdadeira revelação que veio na mensagem do Novo Testamento.[14]

No contexto da eclesiologia atual, quase massivamente, a revelação messiânica no Antigo Testamento é compreendida ou ensinada tendo por base essa argumentação falaciosa denunciada pelo doutor Kaiser Jr. Na verdade, isso aponta o equívoco que é a má compreensão do Novo Testamento, mormente a pessoa de Cristo; pois, no segundo testamento residem passagens que ratificam que o Antigo Testamento não é somente uma mera preparação, mas, sim, uma revelação do Messias.

Uma das passagens mais elucidativas para a argumentação em questão é Lucas 24.14-35, que é a narrativa do encontro de Jesus Cristo ressurreto com dois discípulos que viajavam de Jerusalém para Emaús. No versículo 27 é dito: “E, começando por Moisés, discorrendo por todos os Profetas, expunha-lhes o que a seu respeito constava em todas as Escrituras”. O próprio Cristo se utiliza do Antigo Testamento para falar a respeito de si. Na verdade, todo o cânon do primeiro testamento é tido, pelo próprio Cristo, como uma fonte confiável da revelação da sua pessoa e obra. Além disso, todo o ensino do Salvador era alicerçado no Antigo Testamento, pois “o Antigo Testamento era a Bíblia de Jesus e ele baseava todo o seu ensino nele. ”[15]

No mesmo capítulo de Lucas, alguns versículos à frente, lê-se no versículo 44: “A seguir, Jesus lhes disse: São estas as palavras que eu vos falei, estando ainda convosco: importava que se cumprisse tudo o que de mim está escrito na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos”. Nesse ponto, mais uma vez, Cristo ratifica a revelação de sua pessoa e ministério no Antigo Testamento.

É possível constatar essa verdade alhures, como por exemplo no evangelho do apóstolo João. No evangelho joanino, em 5.46, Jesus Cristo diz: “Porque, se, de fato, crêsseis em Moisés, também creríeis em mim; porquanto ele escreveu a meu respeito”. No mesmo evangelho e capítulo se lê: “Examinais as Escrituras, porque julgais ter nelas a vida eterna, e são elas mesmas que testificam de mim”. Sobre essas duas passagens,

D.A. Carson comenta:

Em contraste, Jesus insiste que, intrinsecamente, não há nada de doação de vida no simples estudo das Escrituras, se não se entende seu verdadeiro conteúdo e propósito. Jesus afirma: ‘E são as Escrituras que testemunham a meu respeito’. Essa é uma das seis passagens no quarto evangelho em que se diz que as Escrituras ou algum escritor do Antigo Testamento, falam sobre Cristo, mesmo que nenhuma passagem específica seja mencionada (cf. 1.45; 2.22; 3.10; 5.45,46; 20.9). O que está em jogo é uma abrangente chave hermenêutica. Por profecia preditiva, por tipo, por evento revelatório e por estatuto antecipatório, entendemos que o que nós chamamos de Antigo Testamento aponta para Cristo, seu ministério, seu ensino, sua morte e ressurreição.[16]

É inegável que todo o Antigo Testamento clarifica um entendimento mais completo da pessoa de Cristo. Por isso, todo pregador necessita expor o Primeiro Testamento, pois estará expondo a pessoa de Cristo.

Uma última razão pela qual devemos pregar do Antigo Testamento é que ele oferece uma compreensão mais completa da pessoa, da obra e do ensino de Cristo do que a pregação meramente do Novo Testamento. Jesus não somente ensinou que o Antigo Testamento dava testemunho dele, como também em sua vida ele viveu, cumpriu e ensinou as Escrituras.[17]

Um exemplo no Novo Testamento que contribuiu com o argumento acima é a carta aos Hebreus, na qual o autor, para apresentar a supremacia de Cristo, que é a ideia central da referida epístola, utiliza-se de muitas passagens, eventos e personagens do Antigo Testamento para que seus leitores primários pudessem ter uma compreensão melhor da pessoa de Cristo.

O Antigo Testamento é a base hermenêutica do Novo Testamento

Uma das passagens bíblicas mais conhecidas do Novo Testamento, no que se refere ao ensino de Cristo, é o conhecido Sermão do Monte, que se encontra no evangelho de Mateus do capítulo 5 ao 7. Nos capítulos 5 e 6 são encontradas várias alusões e passagens do Antigo Testamento.

A exemplo disso, em Mateus 5.38-39 é dito: “Ouvistes que foi dito: Olho por olho, dente por dente. Eu, porém, vos digo: não resistais ao perverso; mas, a qualquer que te ferir na face direita, volta-lhe também a outra”. Aqui já foram elaborados e apresentados incontáveis sermões e estudos bíblicos afirmando categoricamente que o Antigo Testamento ensina sobre vingança enquanto o Novo Testamento ensina sobre o perdão diante das ofensas e perseguições sofridas.

No entanto, esse tipo de ensinamento é completamente equivocado, pois em nenhum dos dois testamentos Deus aprova a vingança enquanto sentimento ou ação do homem. Essa lição é fruto do não uso do Antigo Testamento para interpretar o Novo, pois em Levítico 19.18 é ensinado que “não te vingarás, nem guardarás ira contra os filhos do teu povo; mas amarás o teu próximo como a ti mesmo. Eu sou o SENHOR”. O erro cometido por muitos expositores é preparar um sermão no Novo Testamento que cita direta ou indiretamente o Antigo Testamento sem usar esse último para interpretar corretamente a passagem bíblica.

Muitos expositores bíblicos não conseguem perceber o Primeiro Testamento como a base hermenêutica do Segundo Testamento. Sobre esse ponto,

Augustus Nicodemus acertadamente afirma:

Sem mais nos esquecermos da ação divina na sua formação, podemos nos referir às Escrituras como uma grande empreitada interpretativa. Seria bastante natural que os autores bíblicos, ao registrarem a revelação, o fizessem em termos e com a ajuda de escritos inspirados anteriores que já gozavam de status de Escritura. Com certeza Deus poderia revelar suas palavras e seu conselho diretamente aos instrumentos humanos que escolheu. Porém, não se pode deixar de notar, lendo o Antigo Testamento, que não foi sempre esse sistema empregado por ele. Pois, frequentemente, autores veterotestamentários se referem a autores anteriores e em muitos casos até mesmo identificam as fontes que estão empregando[…] no topo temos o Novo Testamento, repousando, enraizando-se e dependendo de todo este trabalho interpretativo, sendo ele mesmo uma interpretação da Lei, dos Profetas e dos Escritos, ou seja, uma continuidade da tradição hermenêutica inaugurada no próprio Antigo Testamento. Uma leitura correta do Novo Testamento sem a base hermenêutica do que vem anteriormente é impossível.[18]

Essa premissa defendida pelo autor supracitado é exemplificada quando se depara com textos do Novo Testamento que usam expressões que são encontradas no Antigo Testamento. Por exemplo, tanto o apóstolo Paulo quanto o apóstolo Pedro lançam mão de termos veterotestamentários para se referir à Igreja, “santuário do Deus vivente” (2 Co 6.16), “Israel de Deus” (Gl 6:16), “raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus…”  (1 Pe 2.9). É evidente, que “sem o Antigo Testamento, não saberíamos o que é a Igreja, porque o Novo Testamento a descreve com imagens do Antigo Testamento. ”[19]

Esses dois indícios apresentados acima mostram como a igreja hodierna tem caído em um engodo e praticado uma interpretação defeituosa e tóxica do Novo Testamento, pois “um dos perigos de ler o Novo Testamento sem o pano de fundo do Antigo Testamento é uma séria incompreensão do ensino do Novo Testamento ”[20]

e como afirma Kaiser Jr:

A tendência de interpretar a Bíblia na ordem inversa é um sério problema de procedimento, pois deixa um grande vácuo nos nossos ensinamentos e proporciona terreno fértil paras as heresias de amanhã. É reducionista nivelar a Bíblia e remover as suas diferenças para que diga apenas o que Novo Testamento disse.[21]

Então, um leitor, estudioso, intérprete e expositora das Escrituras necessita do Antigo Testamento para compreender para compreender e proclamar toda a Bíblia.

Desestímulos[22] construídos para não se pregar o Antigo Testamento

Como já dito anteriormente, o Antigo Testamento tem sido pouco acionado nos púlpitos cristãos. É quase inabitual ouvir pregações ou estudos bíblicos nas cátedras das igrejas, pois é um número inexpressivo de expositores que se colocam disponíveis para interpretar e pregar passagens veterotestamentárias. Diante disso, consequentemente, o Primeiro Testamento se tornou uma coleção de livros praticamente desconhecida de muitos cristãos modernos “aproximadamente três quartos-partes do que o nosso Senhor tem a nos dizer hoje, quer nós o ouçamos ou não! ”[23]

Isso é uma estatística lamentável e uma contribuição negativa para o aumento de cristãos e comunidades sem nenhum conhecimento de ensinamentos bíblicos e teológicos pertencentes a esfera do Primeiro Testamento. Esses desestímulos são um fardo que tem delido e aferrado a pregação e o ensino do Antigo Testamento.

É notória, tanto nas academias teológicas quanto nas comunidades eclesiásticas, a construção de desestímulos para desencorajar a exposição do Antigo Testamento. Scott M. Gibson diz que são levantadas várias razões para não pregar o Antigo Testamento, como, por exemplo, a desabilitação do expositor com a língua hebraica. Já o professor de Antigo Testamento,

Kaiser Jr, aponta o uso indevido do Testamento em questão:

Só no Antigo Testamento é que recebemos a revelação compreensiva de Deus como Criador soberano, totalmente separado da criação, contudo envolvido com ela. Só no Antigo Testamento é que aprendemos que Deus criou os seres humanos à sua imagem e semelhança para ter comunhão com ele e uns com os outros, com um mandado de desenvolver e cuidar da terra. Só no Antigo Testamento é que recebemos um retrato da queda humana no pecado, resultando em morte, divisão e inimizade entre a semente da mulher e a semente da serpente. Só no Antigo Testamento é que ouvimos sobre a eleição de Abraão e de Israel como o ponto de partida para a restauração de seu reino sobre a terra. Só no Antigo Testamento é que encontramos detalhes sobre a aliança de Deus com Israel, as dez palavras da aliança (o Decálogo), as bênçãos e as maldições. Só no Antigo Testamento é que ouvimos falar sobre a vinda do Messias e sobre o dia do Senhor.[24]

Pode-se apontar vários desestímulos para não se expor o Antigo Testamento nas comunidades cristãs espalhadas pelo mundo. Por isso, os que serão apresentados aqui fazem parte de um universo muito maior. Aqui serão listados os desestímulos mais comuns, quais sejam eles:

Formação acadêmica

Até pouco tempo atrás, a ênfase no Antigo Testamento nas instituições de formação teológica era bem básica. O teologando era ou ainda é minimamente instruído na ciência da hermenêutica, exegese e homilética quando aplicadas ao estudo e a exposição de passagens veterotestamentárias. Uma das evidências dessa afirmativa é a quantidade de disciplinas ofertadas com o foco no Antigo Testamento que, quando oferecidas, pouco capacitam o aluno para compreender e expor passagens desse testamento.

Além disso, a influência de movimentos teológicos que descontruíram ou relativizaram o Primeiro Testamento. Essas ideias teológicas se fixaram nos seminários e faculdades de teologia, influenciando os docentes e, consequentemente, os discentes. As influências de Friedrich Schleiermacher, Adolf von Harnack e Rudolf Bultmann foram acatadas de bom grado em muitas escolas teológicas. Esses teóricos e tantos outros apresentaram o Antigo Testamento como uma literatura secundária ou um relato da fé do povo de Israel; assim, educando futuros expositores a negligenciar ou desacreditar na pregação do Testamento em debate.

Se o Antigo Testamento não era a suficiente e inerrante Palavra de Deus, inspirada pelo Espírito Santo, como advoga a Teoria Documental J,E,P e D de Welhausen por que o pregador ainda teria algum compromisso ou crença para o expor passagens veterotestamentárias? Essa teoria, por muitas décadas, foi ensinada nas mais diversas casas de formação ministerial e teológica, tornando-se, assim, um desestimulante para a proclamação do Antigo Testamento.

As instituições de formação ministerial e teológica deveriam, para abater esse obstáculo, ofertar em sua estrutura curricular mais disciplinas nas áreas de interpretação, explicação e exposição do Antigo Testamento. Matérias como Hebraico, Hermenêutica aplicada aos gêneros literários e Prática da Pregação nos gêneros literários do Velho Testamento são imprescindíveis para extinguir esse desestímulo. Somando-se a isso, apresentar uma visão mais bíblica e ortodoxa do Antigo Testamento.

A língua hebraica

O distanciamento linguístico da Bíblia para os dias atuais é um fato. Tanto o hebraico quanto o grego bíblico se constituem obstáculos para a interpretação e exposição dos dois Testamentos da Sagrada Escritura. São poucos expositores bíblicos que possuem treinamento e habilidade para tratar com os textos originais e assim executar uma exitosa exegese bíblica. Conhecer os idiomas originais é obrigatório para uma compreensão exata do texto. A respeito disso,

Anglada afirma:

A interpretação reformada enfatiza o estudo da língua. Ela ressalta a necessidade de uma investigação cuidadosa dos aspectos morfológicos, sintáticos e semânticos dos idiomas nos quais a Bíblia foi escrita. Sempre foi convicção reformada que uma compreensão adequada das Escrituras exige um estudo rigoroso do texto, nas línguas originais. Isso não implica, como já ressaltei, que aqueles que têm acesso apenas às traduções das Escrituras não possam alcançar uma compreensão satisfatória das verdades que Deus requer que o homem conheça, a fim de que venha a crer, viver e adorá-lo de modo aceitável. Significa sim que, visto que aprouve a Deus comunicar a sua vontade em linguagem humana, seguindo as regras normais de gramática, cabe-nos dar plena atenção ao texto e às línguas em que a Bíblia foi escrita. Para isso, quanto mais conhecimento o intérprete adquirir dos idiomas bíblicos, melhor. Afinal, como entender plenamente a mensagem de uma passagem bíblica sem compreender o que está escrito? Como aplicar corretamente essa mensagem às nossas próprias circunstâncias sem compreender exatamente o seu significado para os leitores originais?[25]

Esse quadro precário no que se refere às línguas bíblicas se torna mais vexatório quando se trata especificamente do Antigo Testamento. Muito expositor bíblico sequer possui os laivos da gramática hebraica, assim excelem as pregações no Novo Testamento em detrimento das pregações no Antigo Testamento.  Pois, por falta do conhecimento adequado da língua acaba sendo mais desafiador para o pregador realiza tanto a tradução como a exegese.

De fato, a alienação da Língua Hebraica sempre será um desestímulo para interpretar e expor livros ou passagens do Antigo Testamento. Apesar da quantidade de várias traduções da Bíblia disponíveis na Língua Portuguesa, urge para o expositor a necessidade de conhecer a língua materna do Primeiro Testamento. Esse desestímulo é vencido com boas gramáticas e cursos de hebraico bíblico.

É importante ressaltar que “os pastores devem adquirir alguma proficiência nas línguas originais da Bíblia. Aqueles que ensinam suas congregações […] não podem se permitir negligenciar uma ferramenta tão importante em seu ministério.”[26]

Contexto sociocultural

O mundo do Antigo Testamento é completamente diferente do mundo do século XXI. As questões culturais, religiosas, sociais e econômicas relatadas nos trinta e nove livros veterotestamentários distam em milênios das mesmas questões nos dias hodiernos. Para ter uma exata compreensão de toda Bíblia e, nesse caso, Primeiro Testamento, é imprescindível um entendimento dessas questões socioculturais, pois “o contexto, o ambiente social, o cenário histórico e geográfico e a data, é normalmente essencial para a avaliação do significado da passagem.”[27]

Ao falar através de pessoas reais, numa variedade de circunstâncias, por um período de 1500 anos, a Palavra de Deus foi expressada no vocabulário e nos padrões de pensamento daquelas pessoas, e condicionada pela cultura daqueles tempos e circunstâncias. Ou seja: a Palavra de Deus para nós foi primeiramente a Sua Palavra a elas. Se iriam ouvi-la, somente poderia ser através de eventos e linguagem que elas poderiam ter entendido. Nosso problema é que estamos muito longe delas no tempo, e às vezes no pensamento. Esta é a razão principal porque precisamos aprender a interpretar a Bíblia. Se a Palavra de Deus acerca das mulheres usando roupas de homens, ou das pessoas que devem ter parapeitos ao redor das casas pode falar conosco, precisamos saber primeiro o que dizia aos seus ouvintes originais – e por que.[28]

Indiscutivelmente, muitos abandonam a exposição pública do Antigo Testamento por não conseguirem estabelecer uma lente de interpretação que vislumbre o mundo em que os livros do Antigo Testamento foram concebidos como Palavra de Deus. Soma-se a isso a defesa incabível de ter que dedicar muito mais tempo para preparar um sermão em textos do referido testamento comparado ao Novo Testamento justamente por causa do estudo do contexto sociocultural e a escassez de material.

Questões teológicas e éticas

Ao ler o Antigo Testamento, mesmo que de modo superficial e rápido, qualquer leitor se deparará e se impactará com passagens que foram exaradas da seguinte forma: “Tudo quanto na cidade havia destruíram totalmente a fio de espada, tanto homens como mulheres, tanto meninos como velhos, também bois, ovelhas e jumentos” (Josué 6.21) e “Os que caíram aquele dia, tanto homens como mulheres, foram doze mil, todos os moradores de Ai.” (Josué 8.25). Essas citadas passagens e tantas outras locadas no Antigo Testamento, para muitos, são carregadas de dificuldades teológicas de modo que evitá-las seria uma solução plausível.

Outras referências bíblicas no Primeiro Testamento causam um embaraço ético, como, por exemplo, a pena capital prescrita para alguns pecados que, na contemporaneidade, são tratados de outra forma. Em Levítico 20. 9-10, lê-se: “Se um homem amaldiçoar a seu pai ou a sua mãe, será morto; amaldiçoou a seu pai ou a sua mãe; o seu sangue cairá sobre ele.  Se um homem adulterar com a mulher do seu próximo, será morto o adúltero e a adúltera”. Como ensinar e aplicar essa questão ética para os cristãos hodiernos? Esta é uma pergunta sincera feita por muitos pregadores que se sentem desestimulados para expor o Antigo Testamento.

É inegável que o AT apresente algumas dificuldades teológicas e éticas, mormente para expositores que não se utilizam de uma hermenêutica e exegese gramatical, histórica e teológica. Essa incompreensibilidade não é necessariamente culpa do texto bíblico, mas da inabilidade do intérprete. Passagens veterotestamentárias podem conter objeções para uma fácil e rápida interpretação teológica e ética, mas isso não as declara como nímias nesse quesito.

É importante pontuar que Jesus Cristo usou a Lei, os Profetas e os Salmos como fundamento e conteúdo do Seu ensino, logo, Ele não deixou de ensinar o Antigo Testamento por causa das dificuldades teológicas e éticas que muitos apontam.

Greidanus, citando John Bright, contribui afirmando:

Cristãos sensíveis podem facilmente se ofender com certas partes do Antigo Testamento. Em relação a isso, John Bright levanta a questão interessante sobre o motivo pelo qual, ‘embora o Antigo Testamento ocasionalmente ofenda nossos sentimentos cristãos, aparentemente não ofendia os sentimentos ‘cristãos’ de Cristo! Será que somos realmente mais ética e religiosamente sensíveis do que ele? Ou talvez não vejamos o Antigo Testamento – e seu Deus – conforme ele via’[29]

Diante disso, essa questão não pode inibir nenhum pregador de expor o Antigo Testamento, mesmo que determinado assunto ou prática exarada lá seja alheia ao homem e igreja da atualidade.

Erros cometidos na tentativa de pregar o Antigo Testamento

Diante desse cenário de desuso do Antigo Testamento para a pregação nas reuniões regulares das igrejas cristãs, encontram-se aqueles remanescentes que, mesmo na contramão, labutam nessa tarefa, não se rendendo aos desestímulos para a proclamação de passagens veterotestamentárias.

Todavia, é comum, na prática da pregação do Velho Testamento, diagnosticar equívocos, tanto de interpretação quanto de exposição, por parte dos expositores. Pregadores e professores, em boa parte, são recorrentes em cometer erros hermenêuticos, exegéticos e homiléticos, levando, assim, a comunidade de cristãos na qual ministram a compreender e aplicar o Antigo Testamento erroneamente. A questão não é somente selecionar uma passagem, mas também evitar a imprecisão no entendimento da passagem em análise.

Essas falhas interpretativas obscurecem a beleza, as verdades absolutas e os princípios de uma passagem, consequentemente deixando os ouvintes contemporâneos sem ouvir, de fato, a voz de Deus no Antigo Testamento. O apóstolo Pedro, quando ministrou o seu primeiro sermão registrado no livro de Atos, fez uso de três referências veterotestamentárias, fazendo uma interpretação teocêntrica e cristocêntrica, levando os ouvintes a ouvirem a voz de Deus e responderem a essa voz com a seguinte pergunta: “Que faremos, irmãos? ” (Atos 2.37).

Para se pregar o Antigo Testamento nos dias atuais é inevitável conhecer esses erros de interpretação e exposição, com o objetivo de fornecer ao público hodierno uma real compreensão do Testamento em questão. Em especial, por causa do foco do presente trabalho, é imprescindível observar e conceituar esses erros nas narrativas bíblicas do Antigo Testamento. À medida que os equívocos literários forem enunciados se fará a exemplificação em passagens escritas no referido gênero literário.

Erro da alegorização

É evidente que o Antigo Testamento contém passagens que se utilizam do recurso da alegoria. No entanto, muitos expositores bíblicos caem no antigo erro da alegorese[30] para interpretar e anunciar passagens exaradas através do gênero literário narrativa bíblica. Esse tipo de abordagem interpretativa do Antigo Testamento remonta à escola alexandrina.[31]

A alegorese tinha como escopo desenterrar o sentido oculto das passagens do Antigo Testamento e, assim, harmonizar com o Novo Testamento. Além disso, para Clemente de Alexandria, esse tipo de método interpretativo era indispensável, pois “a alegoria revelava a verdade ao verdadeiro discípulo, mas escondia dos [32]outros[33]. ”

É muito comum ouvir pregações no Antigo Testamento, nos dias atuais, usando esse método de interpretação. Não é escasso nas mídias sociais vídeos de pregadores que descobrem o significado oculto das “cinco pedras de Davi” ou dos “sete mergulhos de Naamã no Rio Jordão”. Em todas essas pregações citadas, os expositores ignoram consciente ou inconscientemente o real significado do texto e buscam um significado oculto ou “espiritual”.

Erro da moralização

Um caminho fácil para pregar o Antigo Testamento, escolhido por muitos pregadores, é o da moralização. Geralmente, um personagem bíblico é escolhido por causa de seus feitos e virtudes e acaba servindo de modelo inabalável de fé e santidade para todos os cristãos. Os que adotam essa abordagem interpretativa, na entrega de seus sermões costumam afirmar: “façam como tal personagem” ou “temos aqui um exemplo de fé, tenham a mesma fé dele”.

Por exemplo, um pregador pode selecionar o seguinte texto bíblico para falar de oração, Daniel 6.10, em que o profeta orava três vezes ao dia de joelhos. Usando o método equivocado da moralização, ele poderá chegar à seguinte conclusão e ensino na sua pregação: “Meus irmãos, vocês devem parar tudo que estão fazendo durante três vezes no dia, se colocarem de joelhos e orarem. Se não fizerem assim não serão homens e mulheres de oração e Deus não os ouvirá. Vejam o exemplo de Daniel.”

A moralização é um erro recorrente. Tanto nas pregações como nos estudos bíblicos e produções literárias (revistas de escolas bíblicas dominicais), em que personagens bíblicos são colocados como heróis e exemplos perfeitos de santidade, quando na verdade são imperfeitos. E a intenção do autor não foi nos dar um padrão através daquele ser histórico, mas como Deus agiu na vida dele e a mensagem para igreja contemporânea. Sobre esse ponto, Kaiser Jr comenta:

Muitas vezes leitores projetam alguma verdade moral ou espiritual sobre um personagem bíblico ou acontecimento, prestando mais atenção à lição moral que veem na narrativa do que à história em si. A objeção subjacente a interpretar a Bíblia de forma moralista, tirando exemplos de cada passagem de narrativa é que ela destrói a unidade da mensagem da Bíblia. Nesse método de lidar com o texto, cada narrativa tende a ser cortada da história redentora de Cristo e resulta em séria fragmentação da mensagem da Bíblia. Em lugar de considerar todo o acontecimento, personagem, e episódio que contribui para a formação do contexto em que está posto, com demasiada frequência, um processo subjetivo de analogia passa a vigorar, junto com o isolamento individualista de detalhes selecionados que a passam a se ajustar aos caprichos dos propósitos do intérprete. Um processo de seleção assim tende a ser arbitrário, subjetivo, e geralmente não relacionado ao contexto total da narrativa muito menos à mensagem total da Bíblia. Esse tipo de desonestidade hermenêutica do texto não pode trazer consigo a autoridade da Bíblia. O desejo de encontrar o que é prático, pessoal, desafiador e individualmente aplicável é louvável; métodos que essencialmente nos permitem desconsiderar a narrativa em si, entretanto, deixam muito a desejar. A única cura para esse tipo de abuso é aprender a lidar com a questão de como essas narrativas estão sendo, de fato, apresentadas e usadas pelos escritores da Palavra.[34]

Como já apontado pelo doutor Kaiser Jr, esse erro ocorre com frequência no gênero literário Narrativa Bíblica, que ocupa mais de quarenta por cento do Primeiro Testamento, “é a estrutura de suporte e o gênero predominante do Antigo Testamento”[35]. Diante disso, a igreja hodierna tem se alimentando com sermões frutos de uma equivocada interpretação bíblica.

Erro da descontextualização e seletividade

Um dos personagens mais conhecidos do Antigo Testamento é o profeta Elias. O seu ministério é registrado no livro de I Reis, no qual Deus usa-o para confrontar o rei Acabe e sua esposa Jezabel, sendo que os reais eventos históricos exarados são completamente emblemáticos. De todos os acontecimentos e falas ministeriais do referido profeta, a mais usada por muitos pregadores é quando ele diz para uma viúva: “Porque assim diz o SENHOR, Deus de Israel: A farinha da tua panela não se acabará, e o azeite da tua botija não faltará, até ao dia em que o SENHOR fizer chover sobre a terra”. (1 Rs 17.14).

Essas palavras são citadas e ecoadas por expositores modernos fora do contexto e de forma seletiva, visando unicamente falar de suprimento ou prosperidade. Alguns já até aplicaram no sentido de um cristão ser completamente suprido, não passar por nenhum tipo de necessidade, quando bondosamente atende as demandas de um profeta da atualidade. É fato que as Escrituras ensinam, em tantas outras passagens, que Deus pode suprir aquilo que necessário para subsistência de um cristão, mas a citada referência bíblica não ensina isso. O erro da descontextualização e a seletividade resultaram numa equivocada interpretação e aplicação de um texto bíblico.

Sobre a descontextualização,

Fee e Stuart afirmam:

Desconhecendo os contextos integrais históricos e literários, e frequentemente a narrativa individual, as pessoas concentram-se somente nas unidades pequenas e, assim, deixam de perceber os indícios para a interpretação. Se você descontextualizar suficientemente, pode fazer quase qualquer parte da Escritura dizer qualquer coisa que você quiser.[36]

E afirmam sobre o erro da seletividade:

É análoga à descontextualização. Envolve a deliberada escolha de palavras e frases específicas para concentrar a atenção, desconsiderando as demais, e desconsiderando o alcance global da passagem que está sendo estudada. Ao invés de fazer um equilíbrio entre as partes e a totalidade, desconsidera algumas partes e a inteireza da totalidade.[37]

Então, percebe-se que esse erro é muito recorrente, tornando-se uma forma usual de interpretação por muitos que se dizem expositores da Palavra de Deus.

O Antigo Testamento é a voz de Deus para a atualidade. Os pregadores não podem tratá-lo como um apêndice da Bíblia, ou somente um aporte histórico para o Novo Testamento. A igreja contemporânea precisa ouvir a voz de Deus no Primeiro Testamento e experimentar as verdades ali exaradas, como verdades vivas e aplicáveis.

Diante desse desafio de pregar o Antigo Testamento hoje, caminha-se como fazê-lo.

[1] Versão João Ferreira de Almeida Revista e Atualizada

[2] PETER, Vogt. Interpretação do Pentateuco: um prático e indispensável manual de exegese. São Paulo: Cultura Cristã, 2015, p. 150.

[3]GREIDANUS, 2006b, p. 30.

[4] WRIGHT, Christopher J.H. Como pregar e ensinar com base no Antigo Testamento. São Paulo: Mundo Cristão, 2018, p. 11.

[5] KAISER JR, 2010, p. 21-22.

[6] Uma referência à tríplice divisão do Antigo Testamento usada pelos judeus, também denominada de TaNaKe.

[7] DUDUIT apud GREIDANUS, 2006b, p. 45.

[8] É importante ressaltar que, na história do cristianismo e de seus dogmas, sempre houve líderes e movimentos que afirmaram que o Antigo Testamento não é Escritura Sagrada ou Palavra de Deus em sua totalidade. A exemplo disso o herege Marcion e a Teologia Liberal.

[9] ARA – Almeida Revista e Atualizada.

[10] KAISER, 2010, p. 24.

[11] Versão João Ferreira de Almeida Revista e Atualizada

[12] OSBORNE, 2009, p. 412.

[13] BEALE, G.K. Manual do uso do Antigo Testamento no Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2013, p. 55.

[14] KAISER JR, 2010, p. 46.

[15] GREIDANUS, 2006b, p. 24.

[16] CARSON, D.A. O Comentário de João. São Paulo: Vida Nova, 2007, p. 264.

[17] GREIDANUS, 2006b, p. 48.

[18] LOPES, Augustus Nicodemus. A Bíblia e seus intérpretes. São Paulo: Cultura Cristã. 2007, p. 79.

[19] GREIDANUS, 2006b, p.45

[20] Ibid., p.47.

[21] KAISER JR, 2009, p.36.

[22] Greidanus chama esses desestímulos de razões, já Scott M. Gibson denomina-os desafios.

[23] KAISER JR, 2009, p. 36.

[24] GREIDANUS, 2006b, p. 44.

[25] ANGLADA, Paulo. Introdução à Hermenêutica Reformada. Ananideua, Pa: KNOX, 2006, p. 231-232.

[26] KAISER JR, 2002, p. 50.

[27] FEE, STUART, 2008, p. 66.

[28] Ibid., p. 18-19.

[29] GREIDANUS, 2006b, p.41.

[30] Essa influência interpretativa vem de Filo, um famoso judeu de Alexandria. Ele baseou a sua interpretação de Moisés nas ideias dos filósofos gregos, Heráclito e Platão.

[31] Os maiores expoentes dessa forma de interpretação são Clemente de Alexandria e Orígenes. Eles adotaram a abordagem alegórica visando propósitos apologéticos e teológicos.

[32] LOPES, 2007, p. 131.

[33] Clemente chamava isso de epopteia.

[34] KAISER JR, Walter C.; SILVA, Moisés. Introdução à Hermenêutica Bíblica: Como ouvir a Palavra de Deus apesar dos ruídos de nossa época. São Paulo: Cultura Cristã, 2000, p. 66.

[35] GREIDANUS, 2006b, p. 232.

[36] FEE; STUART, 1997, p.76.

[37] Ibid., p.77.

Mário Rubens
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