A carta de Tiago faz uma profunda abordagem acerca das obras (ações ou atos) como expressões da fé em Cristo, ou seja, atos como consequências práticas de quem crê Nele. Dentro desta perspectiva e trazendo essa questão para igreja, ele usa uma situação (v 2, 3) para ilustrar uma realidade social muito comum da época.
Um homem ou mulher era facilmente identificado em sua posição social através de suas vestes e adereços[1] (v 2). Obviamente os ricos eram tratados com mais atenção e credibilidade em relação aos pobres (v 3), além de serem privilegiados de forma decisiva em pleitos jurídicos[2] (v 6, 7).
O termo que chama a atenção é “acepção” ou “discriminação” que no idioma original, tem um peso de julgamento por padrões externos sem considerar as qualidades intrínsecas ou essenciais de alguém[3].
A ideia é que uma pessoa não seja julgada pela aparência ou por uma posição de influência inerente a figura, pois esse favoritismo é movido por um “pensamento maligno” (v 4). Reforçando isso, Tiago cita a segunda parte sintética da lei: “ame ao próximo como a ti mesmo” (v 8, 9) e coloca todo o ser humano em seu estado genérico indistintamente sob o mesmo patamar. Em relação ao termo “próximo” é importante salientar uma subcategoria que nos revela uma condição diretamente subordinada, porém, ainda mais profunda e relevante devido à obra redentora de Cristo na concepção da Igreja: o “irmão em Cristo” (Gl 3.28, 6.10).
A discriminação no texto não é tratada de forma abrangente e descontextualizada, pois, constatamos que as atenções voltam-se especificamente para uma questão social ligada ao capital e seus privilégios adjacentes. Isso é inegável por Deus estabelecer critérios e distinções em toda Bíblia. O contraste entre piedade e impiedade do homem e suas devidas consequências (v 5, Rm 2:6-8), é apenas um dos diversos exemplos que nos levam a não confundir a discriminação específica tratada nesse texto com critérios e distinções de forma geral.
A condenação inicial de Tiago envolve-se na seguinte questão: se Cristo, “O Senhor da Glória” (v 1) que em humilhação tornou-se como um de nós, nunca considerou nenhum padrão externo que colocasse alguém em posição de privilégio, porquê aquele que crê Nele o faria? O caminho inevitável é a reflexão sobre o que comumente se faz com intuito de obter “companhias desejáveis, privilégios, favores e status”. Esses padrões que distinguem pessoas por aparências ou influências, fomentando interesses inescrupulosos não demonstram uma verdadeira fé em Cristo.
Variantes
Versículo 1 – não façais discriminação de pessoas – Esse versículo poderia ser visto como uma pergunta retórica ao invés de afirmação, conforme OMANSON:
As palavras τής δόξης (da glória) podem exercer a função de um adjetivo, a exemplo do texto em NTLH (também TEB, BN, NVI): “nosso glorioso Senhor Jesus Cristo”. Ou, τής όόξης pode ser visto como um aposto de Ίησοϋ Χριστοί), como em ARA (e NBJ): “Jesus Cristo, Senhor da gloria”. […]. No texto, esse versículo é pontuado como afirmação ou como ordem. Confira NVI: “Meus irmãos, como crentes em nosso glorioso Senhor Jesus Cristo, não façam diferença entre as pessoas”. O texto poderia também ser escrito como pergunta (para a qual se espera uma resposta negativa), a exemplo de NRSV: “Meus irmãos e minhas irmãs, será que com seu favoritismo por algum as pessoas vocês estão de fato crendo em nosso glorioso Senhor Jesus Cristo”?[4]
Versículo 3 – στήθι εκεί ή κάθου (fica de pé ali ou senta) – A construção dessa frase em alguns manuscritos é apresentada como: στήθι εκεί ή κάθου ώδε (fica de pé ali ou senta aqui), o termo acrenscentado (ώόε) “aqui” traz um aspecto redundante à frase, mas evidencia uma atitude de humilhação e desprezo, conforme OMANSON:
A leitura que aparece como texto é a que melhor explica o surgimento das outras leituras. A leitura στήθι εκεί ή κάθου ώόε (fica de pé ali ou senta aqui) é, claramente, uma tentativa de tornar explícito o que está implícito no texto. Vários manuscritos trazem στήθι ή κάθου εκεί (fica de pé ou senta ali), mas esta leitura surgiu porque um copista não se deu conta de que o estrado para os pés está mais próximo da pessoa que fala ao pobre do que o lugar onde se queria que a pessoa ficasse de pé. A leitura mais longa, στήθι εκεί ή κάθου ώδε (fica de pé ali ou senta aqui), embora não seja original, “representa as prováveis alternativas que se podia oferecer: o pobre deveria ficar de pé do outro lado , bem longe, mas, caso precisasse sentar, deveria fazê-lo num lugar igualmente adequado, ou seja, num nível inferior, aqui, abaixo do estrado dos meus pés , isto é, no chão” (Laws, The Epistle of James, p. 99). O leitor só perceberá o impacto dessas palavras, caso se der conta de que o pobre recebe a ordem de se assentar perto de quem está falando. “Em contraste com a proximidade da pessoa rica (‘senta-te aqui num lugar de honra’), a proximidade, neste caso, é ainda mais humilhante do que seria ficar de pé lá longe; é uma forma de zombaria” (Johnson, The Letter of James, p. 223). Portanto, na tradução do texto, talvez se possa deixar claro que o pobre recebe a ordem de assentar-se perto de quem está falando. NVI diz assim: “mas disserem ao pobre: ‘Você, fique em pé ali’, ou: ‘Sente-se no chão, junto ao estrado onde ponho os meus pés’”.[5]
Gênero Literário
Epistolar – Esse gênero literário bíblico destaca-se por sua estrutura, utilização em leitura pública nas igrejas, natureza artística e ocasional. As epístolas podem ter algumas variações em sua estrutura, no entanto, o que todas tem em comum é uma abordagem que busca tratar de forma teológica e prática uma situação da ocasião.[6]
Teologia
Cristologia e Eclesiologia – O tema gerador dessa secção parte de uma questão da própria posição e natureza divina de Cristo “O Senhor da Glória”. Temos assim, uma referência direta ao estado glorioso de Jesus, em contraste a sua humilhação através da encarnação para remissão dos homens. Secundariamente, uma abordagem de como a igreja pertencente a Ele deve agir num aspecto social ligado diretamente a uma expressão prática da fé cristã.
[1] ELWELL, Walter. A. Manual Bíblico do Estudante: Um guia para o melhor livro do mundo. Rio de Janeiro: CPAD, 1997. p. 32, 33, 34
[2] STERGIOU, Costas. Theword: Bible Software. Version 5.0.0.1450. [s.l.: s.n.], 2015. 1 CD-ROM.
[3] Ibidem., 2015, n.p
[4] OMANSON, Roger L. Variantes Textuais do Novo Testamento. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 2010. p. 488
[5] OMANSON Apud LAWS, Sophie; Ibidem., 2010, p. 489
[6] FEE, Gordon D; Stuart, Douglas. Entendes o que Lês?: Um guia para entender a Bíblia com o auxílio da exegese e da hermenêutica. São Paulo: São Paulo, 2003. p. 34
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