É consensual que não existe neutralidade científica em nenhuma esfera do conhecimento, inclusive na interpretação bíblica. Isto, porém, não dá liberdade ao intérprete das Escrituras para usar qualquer método que lhe pareça conveniente ou que seja mais adequado para explicar a narrativa da criação segundo o consenso atual. O desafio é, portanto, utilizar o pressuposto correto para que a interpretação seja fiel ao texto.
Todo intérprete deve saber que Gênesis já é uma narrativa com pressupostos; já existe uma interpretação do texto no próprio texto, pois sua leitura apresenta entendimentos de uma visão de mundo estabelecida que expressa tanto a revelação recebida quanto a crença que o escritor tinha a respeito do assunto. Deste modo, é salutar aceitar o fato de que existe um propósito na narrativa de Gênesis. Mas qual é este propósito?
Não existe uma justificativa fácil, afinal, neste livro não é possível contar com um contexto para explicar o que o texto de Gênesis afirma de forma categórica sobre a criação. O que temos são os pressupostos cristãos de que Deus existe, que ele se revelou através de um texto escrito e que este formou o cânon, o qual é a fonte que temos para afirmar a doutrina da criação de forma categórica e absoluta. Isso, porém, deixou de ser suficiente à medida que o mundo foi sendo transformado pelas ideias que foram sendo incorporadas ao pensamento.
O propósito do livro de Gênesis, portanto, é dar respostas às grandes perguntas da humanidade, porquanto as grandes questões que intrigam o ser humano costumam ser respondidas pela visão de mundo que se tem, como por exemplo a questão da cosmogonia. A resposta para perguntas do tipo “como surgiu o cosmo?” e “de onde viemos?” são respondidas conforme a visão de mundo de cada povo e nação.
A cosmogonia ocidental é tradicionalmente judaico-cristã, pois, apesar das opiniões discordantes, a verdade tácita é que ‘Deus criou o mundo’. Não há uma rejeição majoritária a esse pensamento, embora muitos não saibam explicar de forma um pouco mais elaborada como se deu esse processo. É, portanto, bem aí que o perigo está se estabelecendo, pois há uma mudança em curso que cada vez mais enfraquece o pensamento judaico-cristão a respeito da criação e torna a narrativa de Gênesis 1 e 2 um conto, uma fábula ou, no máximo, uma literatura poética.
Para se compreender essa mudança, é importante ter o entendimento a respeito da inevitável transformação que vem acontecendo ao longo dos séculos e que contradiz os pressupostos da criação os quais envolvem o elemento da fé, que tem sido ignorado cada vez mais (Hb 11.3). O texto de Gênesis 1 e 2 naturalmente exige uma cosmovisão cristã para que possa ser entendido adequadamente. No entanto, o que se percebe no meio da igreja é que cada vez mais se tem usado a cosmogonia grega no lugar da cosmogonia cristã, e isso é um equívoco perigoso pois afasta a interpretação bíblica do seu sentido original.
Originalmente, a forma de ver e pensar o mundo partiu de uma cosmogonia judaica: a Torá dava as diretrizes que os israelitas acreditavam para compreender o mundo de forma correta como se vê na narrativa de todo o AT. Porém, a helenização ocorrida posteriormente, principalmente com a ascenção de Alexandre o Grande, mudou completamente essa cosmovisão.
Por muito tempo, a interpretação do mundo se coadunava com aquilo que os dois primeiros capítulos de Gênesis ensinavam, mas a chegada de novos elementos na cultura, como, por exemplo, a tradução da Septuaginta provocou mudanças na forma de se interpretar o texto original, ampliando, deste modo, a opinião a respeito da criação. A mudança de interpretação provocada pela influência do mundo do NT, que era helenizado, trouxe mais elementos diferenciados, pois uma cultura concorrente passou a rivalizar com antigos padrões de interpretação e novas opiniões sobre a criação foram inseridas na forma de se ver e explicar o mundo. A cultura grega popularizou uma cosmogonia de tal forma que a Septuaginta, para ficar apenas no exemplo bíblico, passou a ser usual e comum em vez dos textos hebraicos originais.
Essa influência, no entanto, se estendeu em áreas tão distintas da vida que, até nos dias hodiernos, muito do que se vê e acredita é resultado do pensamento grego estabelecido a séculos, como se vê nos filmes, nos debates e mesmo nas conversas informais. Isso invadiu diretamente a forma dos cristãos olharem para a narrativa da criação, pois os primeiros e mais destacados intérpretes do começo da história da igreja eram gregos, como por exemplo Filo e Orígenes, os quais deixaram um legado influenciado principalmente pelo platonismo popular de seus dias.
Ademais, a interpretação de Gênesis sofreu profundas mudanças a partir da idade média, com o domínio da cosmogonia de Ptolomeu, que viveu no século II a.C. Tal interpretação tinha como argumento central o princípio de causa e efeito, o que, inevitavelmente, trouxe ainda mais mudanças no modo como a narrativa da criação era interpretada (com seus conceitos geocêntricos). Foi Galileu, no entanto, que confrontou a cosmogonia ptolomaica com seu argumento copernicano de que o mundo era heliocêntrico, dando um novo conceito, que também não se coadunava com a interpretação correta de Gênesis, evidenciando assim que nem Ptolomeu nem Copérnico estavam certos no que diz respeito às Escrituras. É importante dizer que a luta de Galileu foi filosófica, e não religiosa ou científica, de modo que ele foi perseguido não por discordar da Igreja, mas de um pensamento dominante, tal qual ocorre hoje.
Com o advento da Reforma Protestante surgiu finalmente um movimento hermenêutico que defendia a “sola Scriptura”, e a “tota Scripitura”, mas que também não foi suficiente para trazer a unidade na interpretação da cosmogonia da criação, pois permaneceu um grupo defendendo a visão de Ptolomeu e um grupo que começava a promover um diálogo entre a Bíblia e a ciência o que veio a redundar posteriormente em uma armadilha de interpretação.
A reação a este novo modo de pensar o mundo trouxe consigo o surgimento do naturalismo, que nada mais foi do que um divórcio entre Bíblia e ciência com seu argumento de que “fé e razão não se misturam”, o que condicionou a Bíblia, que tinha sido a base da ciência no passado, ao patamar de serva desta, a partir do estabelecimento do naturalismo materialista. A conclusão dos adeptos desse pensamento, que surgiu a partir do Iluminismo, era que a Bíblia não serve para explicar a ciência, tornando-se, assim, irrelevante para o debate científico. A antiga e absoluta fonte da ciência foi rejeitada, pois havia se tornado obsoleta para explicar as questões do mundo.
A partir desse ponto, a Bíblia passou a ser interpretada em submissão à ciência, pois o discurso dominante é que se não houver comprovação científica não é possível confiar. Se um relato bíblico não for confirmado pela arqueologia, então ele passa a ser classificado como mito, ou apenas um relato sem sentido para hoje.
De igual modo, os cientistas rejeitaram não somente a Bíblia, mas o próprio Deus como fonte de explicação para a criação (a exemplo de Darwin, que dispensou a presença de Deus para explicar a origem das coisas). A era do criticismo bíblico havia chegado. O texto já não era mais absoluto, tinha que ser subordinado à rigorosa crítica dos investigadores que o submetiam à sua própria cosmovisão, e não mais ao contexto histórico e gramatical no qual foi produzido. As descobertas arqueológicas de antigos mitos sobre a criação levaram a uma comparação com a narrativa bíblica, e abriu-se espaço para inverter a ordem, onde se concluiu que, na verdade, a Bíblia usou as fontes recém-encontradas para criar sua própria narrativa, como o caso dos mitos babilônios, o que colocou a história de Genesis 1 e 2 na categoria de apenas mais um mito.
A partir dessa percepção, tudo passou a ter o mesmo valor, a revelação objetiva perdeu totalmente o sentido. Os mitos antigos, especialmente os babilônicos sobre a origem do mundo, passaram a ser tratados na mesma categoria da narrativa bíblica, sepultando assim a revelação canônica das Escrituras.
Houve uma acomodação do texto bíblico em uma nova posição, baseada no criticismo passando-se a explicar a narrativa da criação apenas como “uma linguagem poética”, pois o que vale não é mais o conhecimento e a sabedoria dos antigos, mas o que se passou a acreditar como racional e mais lógico para a mente dominada pelas correntes limitadas ao racionalismo iluminista.
O resultado dessa acomodação nas cosmogonias dominantes é que deixou de existir um padrão de interpretação bíblica. Dentro da própria concepção teísta do mundo, é possível encontrar cristãos interpretando a narrativa da criação na concepção ptolomaica, enquanto outros pensam de um modo copernicano, e há ainda outros que pensam em uma perspectiva muito newtoniana, o que leva a uma falta de padrão na forma de tratar do texto bíblico de forma fidedigna.
É importante perceber, porém, que apesar das diferentes formas de interpretar o mundo e das diferentes explicações que se dá para sua origem, um conceito apresentado primeiro pela narrativa de Gênesis continua sendo preservado: que havia um caos e este foi organizado por uma força superior. Considerando que o texto hebraico é comprovadamente o mais antigo de todos, é salutar que os cristãos levem em consideração a originalidade dessa revelação. Isto porque, ao se entender a origem do mundo numa perspectiva judaico-cristã, caminha-se no padrão mais antigo, mais confiável, e que, apesar de ter seus pressupostos, estes foram afiançados por Deus, e não pelo homem.
Para os que creem em Deus esta é uma questão de fé (Hb 11.3). Tal padrão é dispensado pelos naturalistas, mas para os cristãos é parte natural da vida, assim como o respirar e o mover-se. Buscar uma explicação para a criação considerando as cosmogonias modernas é, portanto, um erro terrível, pois corrompe o texto bíblico e torna a Bíblia submissa ao que o homem está pensando em determinado momento da história, enquanto sua característica passa pela inerrância apesar do tempo decorrido e pela inspiração divina, apesar de toda a racionalização da vida.
Mesmo com toda a resistência, é seguro para o cristão voltar à antiga forma judaico-cristã de interpretar o mundo e sua origem, porquanto, nela se encontra o sentido original que nunca mudou, diferente das mais variadas interpretações que foram apresentadas ao longo da história, que apesar de serem longínquas em alguns casos, inevitavelmente estão submetidas ao que o homem é capaz de racionalizar.
A revelação de Gênesis 1 e 2, porém, é tanto literal quanto imutável, sua verdade é permanente e absoluta, seus pressupostos estão além da própria realidade humana, de modo que ao se entender adequadamente sua mensagem, entende-se também a origem e o propósito da vida, os quais estão somente em Deus, o criador.

AUTOR/EDITOR/PROFESSOR – Otoniel Gomes Oliveira é Bacharel em Teologia pela Faculdade Kurios. Formado em Teologia Pastoral pelo Seminário Cristão Evangélico do Norte (SCEN). Mestrando em Ministério pelo (SCEN). Especialista em Estudo Teológicos pelo Centro de Pós Graduação Andrew Jumper. Treinado em Liderança Avançada e Gestão de Pessoas e Comunicação pelo Instituto Haggai. É professor do SCEN com atuação em teologia sistemática e pastor titular da ICE em Cidade Operária São Luís/MA
Excelente.
Muito bom