Nos dois mil anos de história da Igreja, o ensino tem sido a principal ferramenta no processo de perpetuação dos valores que esta repassa ao povo, sempre baseado na interpretação da Bíblia.  No entanto tais valores, ao longo destes mesmos anos, têm sido interpretados e reinterpretados conforme a contextualização de cada época e conforme as influências correntes.

Parece impossível se fazer uma interpretação e uma possível aplicação dos conceitos bíblicos, livres destas influências.  Isto num primeiro momento não deveria se apresentar como um problema, mas como testemunhas in loco da história, sabemos que o desejo de se sobrepor está intrínseco em nossa própria natureza, razão pela qual alguns chegam a usar para isso a própria Bíblia, que tem servido de justificativa para atitudes de dominação de uns sobre outros.

Sabemos ainda que o homem é espiritualmente limitado por conta do pecado, todavia alguns destes, mesmo limitados tem pregado o contrário, quando falam de um suposto conhecimento superior, diferenciado dos demais, na intenção de se tornar conhecedor absoluto da verdade e conseqüentemente detentor desta.  Esta atitude, às vezes bem sutil, mas eficiente, por via de regra carregada de hipócritas manifestações de humildade, traz conseqüências imediatas, como a castração intelectual dos liderados, sendo um meio muito eficiente no trabalho de limitar a visão crítica dos seus seguidores.

A igreja tem sido, portanto, ao longo de sua história, um campo fértil para tal prática, pois toda vez que o homem se encontra com autonomia para impor seu ponto de vista, sobrepondo-se inclusive sobre a vontade revelada de Deus, joga para o ostracismo o real ensino cristão e toda a sua essência, sustentando-se avidamente de toda a aparência possível, gerada por suas conclusões pessoais, a fim de que seus atos sejam justificados.

Hoje existem muitas instituições cristãs que pregam uma suposta liberdade de pensamento, mas que praticam o engessamento dos seus participantes dentro de uma doutrina que julgam ser a correta, baseadas muito mais em suas preferências do que na essência do evangelho.  A caverna evangélica já prestou muitos desserviços ao Reino de Deus e ainda hoje rejeita todo conhecimento de quem viu a luz do sol (Deus) e não apenas as sombras (interpretações tendenciosas) de modo que não há quem mais tenha atrapalhado o desenvolvimento da igreja do que a religiosidade e o conhecimento engessado ensinado em muitos meios, gerando discípulos às vezes arrogantes, às vezes indiferentes com o conhecimento.

O pensador secular René Descartes, filósofo francês e defensor ortodoxo do Deus cristão, no entanto crítico do sistema educacional de sua época escreveu: “pois, tendo Deus concedido a cada um de nós alguma luz para diferenciar o verdadeiro do falso, não julgaria dever satisfazer-me um único instante com as opiniões dos outros, se não tencionasse utilizar o meu próprio juízo em analisá-las, quando fosse tempo; e não saberia dispensar-me de escrúpulos, ao segui-las, se não esperasse não perder com isso oportunidade alguma de encontrar outras melhores, caso existissem” (Discurso do método).

O ensino cristão tem este desafio, levar cada aprendiz a um real conhecimento de Deus, sem o peso da tradição sobre seus ombros, sem a influência das experiências dos homens, mas com a essência da mensagem bíblica, a fim de que cada um se livre das algemas que têm sido tão valorizadas entre os cristãos. Certamente que não existe motivo para se declarar uma “guerra santa contra os que pensam diferente”, mas apenas mostrar o quanto as pessoas têm se afastado de Deus e ido atrás do que o agrada, razão por que é necessário abrir mão do gosto açucarado da aparência e partir para o gosto real da essência.

Não é fácil arrancar do fundo da caverna quem já se encontra lá há tanto tempo, mas pode-se trabalhar com quem vem disposto a aprender e ainda não foi sorvido pelas regras que se cria em certos meios no intuito de tolher todo pensamento contrário aos pensamentos que tão largamente tem sido usado em prol de determinados grupos religiosos. É válido lembrar que esta desvirtuação não se limita apenas ao ensino nas igrejas, mas está no estudo e na construção da teologia que se busca desenvolver nos centros teológicos.

O uso dos termos estudar ou fazer teologia condicionou-se ao vocabulário sem, no entanto, corresponder ao real sentido de tais termos.  Seria muita pretensão ao homem se sentir em condições de estudar Deus como sugere a terminologia, mas como existe esta necessidade de conhecimento a respeito de Deus, definiu-se que é possível estudá-lo, fazendo ou estudando teologia.

Mas, todavia, estudar e fazer teologia são necessariamente conceitos diferentes.  Geralmente se é bem mais estudante de teologia que fazedor de teologia, pois normalmente criamos nossas definições tendo por base, fontes de autores que desenvolveram e registraram seus pensamentos.  Mas a fonte primária de toda pesquisa teológica se encontra na Bíblia e como vimos acima, as interpretações desta são carregadas de tendências pessoais e contextuais de cada momento, gerando o risco de uma deturpação do ensino teológico, por isso, eis a razão da necessidade de uma leitura crítica e humilde das Escrituras.

O mito da caverna se estabelece neste contexto quando, baseado nestas interpretações limitadas da Bíblia, é definido o objeto do estudo como conclusivo e literal, abrindo-se mão de possibilidades maiores e mais democráticas de estudar teologia.  Todo ensino é válido, ainda mais quando vem de pessoas que dedicaram suas vidas à pesquisa e interpretação da Bíblia, no entanto elas próprias reconheciam suas limitações e criam que o campo é muito mais vasto do que aquilo que apresentaram.  Quando se abraça exclusivamente um ponto de vista em detrimento dos outros, o estudo da teologia empobrece, pois não se aceita o pensamento diferente, o que limita a possibilidade de geração de novas idéias, enquanto o correto seria a teologia estar livre de aforismos, aberta para discussões salutares e de proveito para o estudante.

É natural que a comparação assuste, pois Platão se preocupou em enfatizar bem a situação daqueles que vivem sob as algemas de um conhecimento limitado, porém é bem verdade que o estudo tendencioso da teologia, tem servido para aprisionar alguns, a ponto de repugnarem qualquer iniciativa contrária às suas conclusões.  Existe uma considerável diferença entre ensinar e ganhar no grito. Hoje parece que o método eficaz é ficar no fundo da caverna, baseado em sombras, ameaçando todos que tentam ver uma luz lá fora.

As idiossincrasias exacerbadas tendem a isolar e criam os riscos de gerar opiniões que cada vez mais o empurram para o fundo da caverna, como bem alertou Friedrich Nietzsche em uma de suas obras: “Em tudo o que escreve um eremita nota-se sempre também algo do eco do deserto, algo de ciciar e do tímido olhar da solidão. Nas suas palavras mais fortes, mesmo no seu grito, ressoa ainda uma espécie nova e mais perigosa de silêncio, de mutismo. Quem esteve sentado durante anos, dia e noite, só com a sua alma, em discussões e diálogos íntimos, quem na sua caverna _ seja ela um labirinto ou uma mina de ouro _ tornou-se um urso de cavernas, ou um pesquisador ou guarda de tesouros, um dragão, verá que as suas idéias acabam por adquirir um tom crepuscular, um odor de profundidade e de decomposição, algo de incomunicável e de repugnante que lança um bafo frio aos que passam” (Para além do bem e do mal).

É necessário estudar para se fazer teologia, existe um desejo em cada vocacionado numa busca neste sentido, mas é muito bom quando as opiniões se somam e promovem crescimento.  Certamente para quem tem a direção do Espírito Santo, concordará com a verdade de Deus, confirmada por muitos outros que já chegaram às suas conclusões.

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