SINOPSE
O presente trabalho tem como objetivo apresentar uma breve biografia do teólogo reformador Heinrich Bullinger, bem como suas ênfases ministeriais e contribuições em sua área de atuação na teologia para o desenvolvimento e consolidação do pensamento reformado.
1. INTRODUÇÃO
A reforma protestante foi e tem sido marcada por grandes e notórias figuras no decorrer do seu desenvolvimento, homens desde a pré-reforma como John Wycliffe e Jan Rus assim como durante o ápice da reforma como Martinho Lutero, Huldrych Zwingli e João Calvino são referências no que tange às origens, desdobramento, sistematização e consolidação do pensamento reformado.
Houve, no entanto, entre Huldrych Zwingli e João Calvino, um homem da segunda geração dos reformadores do século XVI geralmente negligenciado no estudo da tradição reformada e sobre o qual há muito escasso material em português, porém de grande relevância no período em que atuou: Heinrich Bullinger.
Através da vida de Bullinger considerando aspectos como ministério e erudição teológica poderemos constatar tanto por sua história de vida quanto por seus estudos a importância, abrangência, influência e potencial deste reformador no processo de desenvolvimento do pensamento reformado desde a sua época até os dias atuais.
2. A VIDA DE HEINRICH BULLINGER
2.1 Nascimento e família
Johann Heinrich Bullinger nasceu em 18 julho 1504 na cidade de Bremgarten – Suíça, filho de sacerdote, um Cabido[1] de Bremgarten e Anna Wiederkehr era o mais novo dentre os cinco filhos. A recente realidade do celibato ainda não era obrigatoriedade na época e o relacionamento entre seus pais, a saber, um clérigo e a filha de um moleiro resultou em uma educação cristã e piedosa de Bullinger e seus quatro irmãos. O pai de Bullinger era conhecido por sua hospitalidade e generosidade, sua família usufruía de uma vida confortável.[2]
2.2 Estudos
Bullinger iniciou sua vida acadêmica bem cedo, por volta dos cinco anos de idade na escola de Bremgarten, em seguida, aos doze anos foi enviado para renomada escola de Emmerich. Aos quinze anos de idade ele ingressou na tradicional Universidade de Colônia, em doze de dezembro de 1519 foi para a Faculdade das Artes. Um ano depois finalizou sua formação em bacharelado na Universidade de Colônia.
Sua instituição de formação, ao contrário de instituições mais recentes da época como a Universidade de Basileia, sempre manteve uma posição mais tradicional e escolástica. Porém, a recente adoção de alguns dos seus mentores por métodos humanistas (relacionados ao retorno para as fontes do saber), compeliu Bullinger à aproximação da patrística, principalmente as literaturas de Crisóstomo e mais tarde Ambrósio, Agostinho e Jerônimo. Aos dezessete anos ele teve contato com seu primeiro Novo Testamento, começando seus estudos inicialmente pelo Evangelho de Mateus tendo como material auxiliar e complementar os escritos de Jerônimo.[3]
A leitura e forte influência de Loci Communes de Philipe Melancthon fizeram Bullinger abraçar de forma irreversível as doutrinas de uma fé evangélica.
2.3 Profissão
Em Bremgarten, o jovem Bullinger aceitou o cargo de diretor da escola monástica local, mas com a exigência da não adesão a qualquer doutrina ou prática monástica. Nesse período ele começava sua atuação profissional no ensino teológico ministrando cursos e palestras sobre as Escrituras. Em um intervalo de seis anos Bullinger havia formado o seu primeiro compêndio de estudos e comentários de 21 livros do Novo Testamento. Seu ensino começava a impactar o monastério local e toda a cidade culminando em um primeiro contato, aproximação e estabelecimento da amizade com Huldrych Zwingli.[4]
2.4 Ministério
Bullinger iniciou seu ministério na cidade de Kappel atendendo ao chamado do sínodo de Zurique, mas tarde tornou-se o pastor da sua cidade natal: Bremgarten. Após a morte de Huldrych Zwingli na batalha de Kappel, e também devido a expansão do movimento Contrarreforma sua cidade natal tornou-se católica forçando-o à mudança para Zurique, onde recebeu o convite de três igrejas reformadas para o desenvolvimento do ministério, em dado momento foi eleito para o posto de pastor da igreja de Zurique, assumindo a posição antes ocupada por seu amigo Zwingli:
Em 9 de dezembro de 1531, após ter pregado um sermão eloquente no Grossmünster, Heinrich Bullinger foi eleito, com a idade de 27 anos, para o posto de primeiro pastor da Igreja de Zurique. Em razão das restrições que o quarto artigo de Meilen impunha à liberdade do ministério, Bullinger exigiu um prazo antes de confirmar às autoridades de Zurique se aceitava o cargo.[5]
Ele preservou o ministério focado na pregação bíblica expositiva iniciado por Zwingli e ficou “conhecido por sua fidelidade como expositor bíblico”[6] na Suíça. Teve o encerramento de sua vida e carreira em 17 de setembro de 1575 deixando um legado de excelência teológica e pastoral, bom marido, pai dedicado e hospitalidade cristã.
3. A TEOLOGIA DE HEINRICH BULLINGER
Para alguns estudiosos a teologia de Bullinger pode ser resumida em uma de suas obras chamada “The Decades”. Considerada sua principal e mais completa produção teológica é constituída de um conjunto de sermões sobre as principais doutrinas cristãs:
Sua teologia pode ser resumida em sua obra “Décadas”, composta de cinqüenta sermões longos, que tratavam dos ensinos das principais doutrinas cristãs. Essa obra foi publicada em 1549-51, traduzidos em seguida para o inglês, holandês e francês. Na Inglaterra, ela serviu como literatura oficial para os clérigos que não haviam feito o mestrado. Ao todo, Bullinger escreveu aproximadamente 150 obras, em torno de temas como a providência, justificação e a natureza das Escrituras.[7]
Bullinger, através de sua teologia, desempenhou um papel muito importante na promoção da unidade doutrinária em várias regiões da Europa. A elaboração da Confissão de fé helvética, “adotada pelas Igrejas Reformadas da Suíça, França, Escócia, Hungria, Polônia e outras”[8] teve sua participação ativa e mostra o quanto ele era aplicado no trabalho de união doutrinária da igreja protestante:
Bullinger também desempenhou papel importante na união dos protestantes. Juntamente com Calvino, procurou evitar cismas entre os protestantes através do Acordo de Zurique (1549), que afirmava que “os crentes, mediante a Ceia do Senhor, recebem a Cristo espiritualmente e são unidos a Ele”3. Participou da composição da Primeira Confissão Helvética e escreveu a Segunda Confissão Helvética em 1566, tornando-se o elo de união entre as igrejas calvinistas da Europa continental.[9]
Existem, porém, algumas áreas específicas da teologia que podemos destacar dentro da abrangência dos estudos de Bullinger:
3.1 Principais ênfases e questões teológicas
3.1.1 Eclesiologia – A questão ente igreja e estado
Uma das áreas em que Bullinger mais atuou foi a eclesiologia, especialmente em questões mais práticas como governo da igreja, e também cosmológicas como sua natureza, abrangência, identidade e liderança. Assim como Zwingli, sempre tratava com bastante vigor e atenção as questões entre igreja-estado e tinha seu posicionamento bem definido colocando-se a favor da indissolubilidade de ambos:
Para Bullinger, qualquer separação entre Igreja e Estado era em si uma coisa impensável. Se a Igreja devia ser governada através de medidas de disciplina aplicadas a partir dos encontros bienais do ínodo, em nenhum momento Bullinger exigiu (como João Calvino faria mais tarde em Genebra) que a aplicação pública da medida mais extrema — a excomunhão — fosse colocada exclusivamente na mão da autoridade clerical, sem participação dos magistrados.[10]
Tal posicionamento culminou em uma busca por supremacia e sobreposição do estado sobre a igreja em Zurique após a morte de Bullinger. A voz e autoridade relevante tanto no aspecto espiritual quanto político já não existia, logo, o estado procurou desenvolver seu papel natural ofuscando seu trabalho e deixando-o no esquecimento até mesmo em sua localidade de origem, isso “em parte explica por que Bullinger, o representante histórico da Igreja fiel de Zurique, atualmente é tão desconhecido,”[11].
Já em relação à natureza, identidade e liderança da igreja vemos um duplo aspecto em sua composição e abrangência, a saber, a igreja sendo visível e invisível. A pregação fiel das Escrituras e a correta administração dos sacramentos como marcas da verdadeira igreja, e a revelação escriturística através dos ensinos dos Apóstolos como base fundamental para continuidade da liderança apostólica legítima:
Sua eclesiologia era bipolar, isto é, há uma igreja visível e invisível. A igreja invisível é composta de todos os eleitos, enquanto que a visível, de todos os crentes professos. Somente Deus conhece perfeitamente os membros de ambas. Os sinais da verdadeira igreja são a pregação correta das Escrituras e a administração fiel dos dois sacramentos da Igreja (Batismo e ceia). A verdadeira sucessão apostólica não está na sucessão histórica dos bispos, mas na pregação e ensinamento dos ensinos dos apóstolos.[12]
Apesar da problemática do posicionamento sobre igreja-estado proposta por Bullinger, podemos destacar os pontos sobre natureza da igreja, pregação, sacramentos e continuidade da autoridade apostólica somente através das escrituras como fortes contribuições para o pensamento reformado dentro da perspectiva eclesiológica.
3.1.2 Contrastes e abordagens alternativas a teologia Calvinista
Continuar falando sobre a teologia de Bullinger inevitavelmente nos remeterá ao seu contemporâneo e uma das principais mentes teológicas da época: João Calvino.
Um contraste encontrado no pensamento calvinista era justamente em relação à eclesiologia e mais precisamente à questão de igreja-estado. Calvino representando Genebra lutou arduamente contra o posicionamento de Zurique, representada por Bullinger, e fez uma clara distinção entre as duas esferas:
A institucionalização, feita por João Calvino, de uma distinção clara entre as duas esferas era certamente mais bíblica (e menos perigosa) do que a acomodação política em Zurique. A longo prazo, a solução genebrina, mais doutrinária e polêmica, provou-se mais frutífera, tanto espiritual quanto politicamente, do que o acordo pragmático de Zurique.[13]
Além do contraste eclesiológico existem aparentes contrapontos nas abordagens teológicas desses dois grandes reformadores em relação às Escrituras, predestinação e aliança. Ocorrem argumentações que tentam opor as abordagens exegéticas de Bullinger e Calvino em cada um desses temas, porém, um olhar mais atento poderá evidenciar que se tratam apenas de ênfases e focos distintos.
Tomando como exemplo os comentários de Romanos tecidos por ambos de forma individual, observa-se que as bases exegéticas de ambos são unânimes, mas a ênfase de Bullinger é na elucidação simples da abordagem enquanto a de Calvino é concentrada em precisão e correções doutrinárias. No tema “justificação” a defesa da posição evangélica contra a objeção católica romana é consensual, mas Bullinger fala sobre formalidades e culto as imagens enquanto Calvino opõe-se aos erros doutrinários e a idolatria. Para eles Deus de fato salva de forma unilateral todos os pecadores, porém Bullinger é mais hesitante na predestinação e reprovação ao passo que também é otimista em relação a salvação dos pagãos[14]
Houve, no entanto, um fato que finalizou de forma definitiva a ideia de oposição e rivalidade irremediável entre as abordagens teológicas desses dois reformadores. O acordo sobre um debate referente à santa ceia celebrado com uma obra literária de Bullinger chamada Consensus Tigurinus confirma que eles eram de fato teólogos reformados de uma mesma linha:
Podemos destacar, entre vários outros acontecimentos, alguns que marcaram as obras literárias de Bullinger: a publicação em 1549- 1551 de suas Décadas[18] (sua obra teológica mais completa); o acordo com Calvino sobre a santa ceia; o célebre Consensus Tigurinus de 1549[19] e a Segunda confissão helvética (1561-1566).[15]
A teologia de Bullinger, de modo geral, já não pode ser vista como oposição ou paralela ao pensamento reformado, mas como uma forte aliada para a contribuição e desenvolvimento da reforma, apesar das aparências e ressalvas.
3.1.3 História e cronologia na teologia
Como observado em suas influencias teológicas e filosóficas no meio acadêmico, ele sempre foi compelido ao “retorno para as fontes do saber”. Um trunfo usado pela igreja católica romana para oposição as doutrinas reformadas era o argumento de que esses novos ensinos eram insurgentes ao que era tradicional e legítimo pela tradição católica. A proposta de Bullinger, no entanto, é observar a cronologia para o desenvolvimento da fé cristã e da igreja considerando o proto-evangelho e a teologia aliancista como ponto de partida para redenção, ou seja, um retorno para “velha fé”:
Um dos problemas apologéticos essenciais da Reforma do século XVI foi contrapor-se à afirmação católica romana de que as doutrinas evangélicas pregadas pelos Reformadores eram novas. A resposta de Bullinger a esse dilema, a qual coincidia com uma de suas posições teológicas fundamentais, afirmava que os partidários de Roma poderiam falar o que quisessem sobre essa “nova doutrina”, porque ainda assim ela seria nada menos do que “A velha fé”, de fato tão antiga quanto o proto-Evangelho de Gênesis 3.15. Porque, para Bullinger, a fé cristã não teve seu início com a encarnação e vinda de Jesus Cristo, ou com a descida do Espírito Santo em Pentecostes, mas com a aliança de redenção feita por Deus com Adão, imediatamente após a Queda.[16]
CONCLUSÃO
A vida, ministério e teologia de Heinrich Bullinger comprovam o quanto esse reformador da segunda geração foi importante, para o desenvolvimento do pensamento reformado. Bullinger através do seu trabalho acadêmico e pastoral contribuiu fortemente para disseminação da fé reformada e unificação doutrinária da igreja protestante apesar dos desafios e perseguições impostos a sua realidade.
Sua parceria ministerial com outros renomados reformadores da época mostra o quanto a fé reformada é dinâmica sem deixar de ser legítima para vivencia da igreja até os dias atuais.
As contribuições teológicas de Bullinger e seu posicionamento efetivo em relação as Escrituras impactaram sua época e refletem um caráter fiel e piedoso de um homem que buscou compartilhar a originalidade e autenticidade da fé e vida cristã.
REFERÊNCIAS
BERTHOUD, Jean-Marc. A grande tradição reformada: Bullinger, Beza and Pictet. Distrito Federal: Editora Monergismo, 2020. 1 ed.
COSTA, Carlos de L. Sola Scriptura: a visão dos reformadores
acerca da bíblia. Via teológica, Paraná, Volume 18, Número 36, p. 121-144, dezembro, 2017.
SILVA, Victor Hugo. Johann Heinrich Bullinger (1504-1575). Monergismo, s.d. Disponível em: << http://www.monergismo.com/textos/biografias/johann-bullinger-helio.pdf >. Acesso em: 8 nov. 2021.
Segunda Confissão Helvética. Monergismo, s.d. Disponível em: << http://www.monergismo.com/textos/credos/seg-confissao-helvetica.pdf >. Acesso em: 8 nov. 2021.
[1] CABIDO – conjunto dos clérigos de uma catedral, igreja ou colegiada.
[2] BERTHOUD, Jean-Marc. A grande tradição reformada: Bullinger, Beza and Pictet. Distrito Federal: Editora Monergismo, 2020. 1 ed.
[3] Ibid., p. 12.
[4] Ibid., p. 13.
[5] Ibid., p. 17.
[6] COSTA, Carlos de L. Sola Scriptura: A Visão Dos Reformadores Acerca da Bíblia. Via teológica, Paraná, Volume 18, Número 36, p. 121-144, dezembro, 2017. p. 133.
[7] SILVA, Victor Hugo. Johann Heinrich Bullinger (1504-1575). p. 1.
[8] Segunda Confissão Helvética. Monergismo. p. 1.
[9] SILVA, op. cit., p. 1.
[10] BERTHOUD, op. cit., p. 22.
[11] Ibid., p. 24.
[12] SILVA, op. cit., p. 1.
[13] BERTHOUD, op. cit., p. 24.
[14] Ibid., p. 50.
[15] Ibid., p. 20.
[16] Ibid., p. 36.
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