O estudioso de teologia tem uma tarefa desafiadora, compreender da forma mais fiel e sensível possível a realidade do ser em estudo, a saber, Deus. Mas, de forma óbvia e contundente, esta relação é totalmente desfavorável aos que se lançam na busca pela compreensão de Deus.
Isto, todavia não dispensa a realidade do paradoxo, porquanto, ao longo do desvendamento desvelado, Deus sempre compungiu homens a registrarem através da escrita a sua revelação, de tal modo que a Bíblia hoje pode ser compreendida como Deus grafado aos homens, afinal, sua Palavra é sua própria personalidade.
Porém a tarefa confiada aos homens é um tanto espinhosa, pois embora este tenha de fato o conhecimento de Deus através das Escrituras, a própria limitação humana não permite um conhecimento pleno, ou seja, alguns espaços ficarão vazios, dimensões onde sempre se incorrerá no perigo de preencher com as percepções excessivamente humanas.
Ser fiel a intenção original do autor sagrado definitivamente não é uma tarefa fácil, ainda mais quando se sabe que o caminho para “dar o significado” é sempre mais curto do que “achar o significado”. Há, no entanto os que conseguem distinguir os termos “dar” e “achar”, se tornando então fieis proclamadores de uma verdade inefável.
Entretanto, mesmo esta condição leva a um novo perigo, que é a disposição interna, inerente a todos de se vangloriar de seus feitos, vindo tal figura a sentir-se merecedor de todos os reconhecimentos e aplausos. Parece, então que não são poucos os desafios para juntar de forma equilibrada conhecimento e sabedoria, por isso é válida a reflexão ora apresentada.
O debate escolástico na sua fase final se utilizava do termo latino asseidade que significa a qualidade do ser que é por si só, ou seja, que tem causa própria em si mesmo, não existindo fora de si. A ideia é que não existe absolutamente nada que exija sua existência nem condição necessária para que venha a ser.
É justamente deste ser que a teologia trata, o que de imediato provoca ou deveria provocar pavor por parte do pretenso estudioso da causa. Tal reação não seria de todo anormal principalmente por conta de que o contrário é rigorosamente correto, porquanto o homem se define na condição de abaliedade, ou seja, qualidade de alguém que precisa de outro para ser a sua causa inicial. Eis então o paradoxo estabelecido.
O panorama sobre o termo Deus é um tanto obscuro devido a origem incerta e remota deste, o que se sabe todavia é que se trata de um termo muito antigo que foi compreendido pelos israelitas do Antigo Testamento como uma palavra que denota algo de superioridade e autoridade sobre qualquer outro ser, mesmo os que são tidos por semelhantes.
Embora povos próximos a Israel, como os fenícios, tenham usado o nome “deus” para referir-se aos seus ídolos, foram os judeus que conseguiram expressar da forma mais absoluta possível a quem realmente o termo se referia. Com isto houve uma natural distinção sobre o que significava o seu uso, em relação a tantos outros empregos que eram dados ao redor do mesmo nome.
Para aqueles a quem foi revelado a grandeza de Deus, nunca faltou convicção sobre quem era contemplado com este nome, contudo ainda assim, nunca houve uma compreensão única ou definitiva sobre sua pessoa, pois até mesmo os que tinham a função de falar sempre sobre ele, frequentemente se sentiam indignos de sequer pronunciar o nome pessoal de Deus, “Iavé”.
A história do povo judeu atesta que pelo nome eles reconheciam a natureza e o caráter de Deus, embora isto não significasse que eles conhecessem plenamente o ser a quem prestavam reverência. Sabiam, todavia que era alguém digno de toda honra e temor.
A declaração de Êxodo 3.14 é latente no seu poder e na sua abstração, refletindo bem o caos que a frase “Eu sou o que sou” provocou na mente do interlocutor e de todos os seguintes. Deve ter sido apavorante, tanto para os primeiros quanto deve ser para os estudiosos de hoje, ainda mais quando se é deparado com a ideia de que é este, o ser e a razão do estudo da Teologia. Ora, diante disto, não se pode clamar por outro que não seja o próprio a quem se busca conhecer.
E ai, novamente o estudioso se depara com o dilema, pois foge de suas mãos qualquer possibilidade de manipular o ser em estudo, mas para que tenha alguma possibilidade de conhece-lo, precisa se deixar dominar por ele. Para o homem acostumado em ter suas percepções egoístas atendidas, é sempre fator de crise, saber que embora seja o interessado, precisa depender de Deus para que possa entender mesmo que minimamente sobre Sua pessoa. Se forma deste modo o paradoxo entre a asseidade divina e a abaliedade humana.
Semelhante ao Antigo, o Novo Testamento também fala de Deus como a divindade comum aos judeus antigos, o que é refletido na forma como eles se relacionam com Ele à semelhança dos seus antepassados. Nesta concepção herdada dos tempos veterotestamentários Deus sempre é visto como a autoridade última em qualquer área da vida.
Porém, o próprio termo Deus carrega consigo as habituais digressões dos nomes antigos, pois foi cunhado dentro de uma concepção politeísta de mundo e sem o propósito original de denominar o criador, mas de dar um título a um ser merecedor da mais alta honra.
A percepção comum era de seres sem uma conotação de divindade universal nem absoluta, de maneira que a percepção de Deus encontrada no Novo Testamento não pode ser remetida aos primórdios gregos do termo embora tenha sido este povo que deu esta alcunha às divindades ao seu redor.
Vê-se então uma nova crise na relação entre Deus e o homem, posto que embora este tenha sido capacitado a buscar aquele, foi do último que saiu a definição usual do primeiro. Sendo assim, descontrói-se pelo menos no que se refere ao nome, a condição de asseidade essencial ao ser divino, fazendo revelar o homem como um ser, embora limitado na sua essência, não tão desprezível como poderia ser.
Assim sendo, parte-se para uma nova visão na relação criador e criatura, pois embora aquele não tenha qualquer nexo ou exigência para com esta, percebe-se que foi permitido a este ser criado, ter a percepção de como deveria referir-se ao criador. Desta forma, sua busca por Deus não parte de um vazio, mas de uma possibilidade prévia estabelecida pelo próprio Senhor.
Então mais uma vez, o que se pode apreender é que mesmo a condição humana seja de uma abaliedade estabelecida, o homem é capaz de lançar-se rumo ao criador, embora sabendo que esta não é uma empresa fácil. O sentimento dominante deve ser então de uma humilhante dependência.
A dificuldade de compreensão de tal relação está descrita novamente no Novo Testamento quando a antiga teofania revelada a Moisés foi novamente relembrada nas palavras de Jesus quando repetiu o “Eu sou” de Iavé (Jo 8.58). A reação de não aceitação foi uma clara demonstração da dificuldade em compreender a aproximação do ser divino para com o homem.
Isto revela a tensão permanente entre o viver a expectativa da presença divina e a rejeição de sua presença quando ela acontece dentro da capacidade de compreensão do homem. A encarnação divina foi o mais claro exemplo disto. Continua até hoje a dificuldade de percepção entre a historicidade e a transcendência de Deus, conflito impossível de ser esclarecido plenamente no pensamento de um estudioso da Bíblia.
Uma forma comum encontrada pelos escritores sacros é de referir-se a Deus como o “Pai”, o que não resolve as intricadas questões previstas acima, porém serve de alento nesta relação que oscila entre a clareza das Escrituras e a dificuldade da interpretação quando se busca expressar a dimensão desta relação.
A percepção final a ser considerada pelo estudioso da Bíblia deve ser então, sempre de uma figura limitada na sua essência, mas a quem foi bafejado a centelha divina capaz de fazê-lo insuflar na busca pelo real entendimento daquele que o criou. Entrementes é valido nunca esquecer de tal fato, visto que é exatamente por conta dessa condição dado pelo criador à criatura que o homem é capaz de saltar em regozijo quando percebe que lhe foi concedida a graça de conhecer um pouco mais de quem o fez.
Isto implica amiúde, não esquecer de que o agraciado é o que compreende e não o que é compreendido, afinal quando o sentido é invertido, a teologia entra em colapso e vem inevitavelmente as heresias, que embora execráveis, também são uma realidade.
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