A HOSTILIDADE E O DESAFIO DE ISAÍAS

O texto de Isaías 6 há muito tem sido utilizado nos sermões que objetivam despertar o sentimento missionário entre os cristãos, mas definitivamente ele tem um alcance bem maior que este.

Seu contexto histórico se dá em um ambiente hostil à ideia de um Deus único, portanto cheio de ídolos e deuses estranhos. É nesse meio que acontece a revelação a Isaías e seu chamado para proclamar a verdade de Deus entre o povo de Israel.

O início da própria narrativa revela como Deus ridiculariza as práticas que os israelitas costumavam utilizar na busca por estes falsos deuses. O ritual de tocar a boca do profeta com uma brasa relembra uma prática comum no oriente onde o ídolo era separado e colocado numa condição de matéria animada através deste procedimento que supostamente transferia vida para este.

Deus usa o mesmo processo com o profeta para mostrar que nele sim, existe vida, a prova seria a presença do próprio profeta falando entre eles. A expressão que fala de um povo de lábios impuros trata de uma acusação contra falsos deuses como indica a declaração do próprio Deus em outras passagens (Salmos 115.3-8).

Isaias foi levado ao templo verdadeiro do verdadeiro Deus, onde foi purificado pelo próprio Senhor, ficando cheio da presença de Deus a fim de refletir sua imagem e semelhança. A partir daí o profeta estava pronto para proclamar o evangelho do Senhor.

No entanto, sua exclamação de que era indigno de ter aquela experiência singular, parte de seu próprio reconhecimento do quanto era grandioso receber aquele solene mandato, ainda mais que se encontrava em um meio social muito desgastado pela idolatria e pela irreverência.

Sua conclusão é fruto da sua própria condição espiritual, que inevitavelmente estava influenciada pela religiosidade da sociedade de sua época, conforme se vê na sua conclusão; “sou um homem impuro”. A natureza de tal exclamação se dá por uma compreensão particular da corrupção ética e religiosa em que ele estava inserido.

Porém, a condição sui generis a ser observada é que mesmo estando em condição tal, o comissionamento não vem de particular elucidação por parte do profeta, mas é confirmada pela chamada divina que o tira de tal estado para cumprir a tarefa missiológica que lhe é atribuída naquele momento, sendo portanto, algo que parte não da vontade do profeta mas da vontade divina que o chama para fora a fim de envia-lo aos que eram hostis a Deus.

Esta tarefa missionária encontra seu sentido final na Missio Dei, afinal qualquer atividade desta natureza deve redundar na glória da Santa Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo, o que a torna ainda mais relevante para o entendimento adequado pois traz consigo tanto os aspectos humanos quanto a natureza espiritual que é inerente a ela.

É nessa perspectiva que a Missio Dei deve ser considerada aqui, porquanto trata da ação divina revelada nas Escrituras em busca do homem moribundo que vive sufocado em si mesmo, sem nenhuma perspectiva de mudança a não ser por essa poderosa intervenção divina.

A TAREFA DA MISSIO DEI ANTE A IDOLATRIA

A concepção de Missio Dei do profeta é particularmente importante na definição das diretrizes que ele vai usar, pois é a partir de sua consciência missiológica que ele está falando da missão de Deus no mundo e de Deus como alguém essencialmente missionário, como assim também ele mesmo se coloca como parte ativa dessa missão.

No contexto do livro de Isaias, então essa percepção da Missio Dei aparece como algo extremamente relevante, pois como diz Bosch:

Assim, se há um “missionário” no Antigo Testamento, é o próprio Deus que, como seu ato escatológico por excelência, levará as nações a Jerusalém para adorá-lo aí juntamente com seu povo da aliança… As nações estão esperando por Javé e confiando nele (Is 51.5). Sua glória será revelada a todas elas (Is 40.5). Todas as extremidades da terra são conclamadas a olhar para Javé e ser salvas (Is 45.22). Ele torna seu servo conhecido como luz para os gentios (Is 42.6; 49.6). Uma estrada é construída do Egito e da Assíria até Jerusalém (Is 19.23); as nações encorajam umas às outras a subir até a morada do Senhor (Is 2.5) e levam presentes valiosos consigo (Is 18.7)[1]

Por isso que a manifestação indignada diante da idolatria se mostra tão relevante, porquanto, tal ato afronta diretamente o propósito divino para a criação, tanto no que diz respeito ao homem como a tudo que existe.

A indicação sobre as consequências da idolatria é imediata e direta, porquanto o que se conclui é que ao adorar um ídolo o adorador toma para si a mesma condição daquele que idolatra. O Salmo 135.15-18 revela exatamente esta verdade.

A declaração do salmista é evidente na sua intenção pois se refere à repugnante prática já condenada anteriormente tanto no decálogo (Ex 20. 3-5) como nos próprios Escritos Poéticos (Sl 115.4-8), as quais condenam veementemente qualquer ato idolátrico. A advertência é clara quando diz que o fim dos idólatras é tornarem-se semelhantes a seus ídolos, ou seja, sem vida, apenas uma pálida matéria inanimada.

A razão, portanto, da ordem dada ao profeta pode ser vista no início do livro profético onde Deus já indica a condição de idolatria do seu povo, conforme visto no exemplo de Isaías 2.8. Israel havia caído em um estado de idolatria e o profeta é chamado para dizer a eles que seu pecado iria, a exemplo de seus ídolos, deixá-los sem vida, inanimados à semelhança deles.

A advertência divina vem desde o começo da revelação ao profeta, se referindo, não a um povo estranho e desconhecido, mas ao próprio povo de Deus que havia se corrompido, como pode ser observado no comentário que Oswalt faz no livro de Isaias:

Mas a idolatria, finalmente, é loucura, e Isaías representa esse fato com a palavra que ele usa aqui, ou seja: ‘elîlîm, “sem valor”… Quão louco é denominar de divino o que mãos humanas fizeram. Se a deidade é de alguma forma a imagem ou o produto do gênero humano, então o mundo é sem sentido ou propósito.[2]

A palavra do profeta foi que o povo seria punido pelo próprio pecado por conta do justo juízo de Deus. A cegueira e a mudez espiritual não foram um ato caprichoso e iracundo por parte de Deus, mas devido à falta de sensibilidade para as coisas divinas eles seriam castigados com os seus próprios pecados.

A razão disto era tão somente porque eles tratavam a Deus como se fosse seus ídolos, portanto Deus mostra o quanto seus ídolos são falsos, não falam, não ouvem, não sentem, por isso eles eram merecedores dos mais duros castigos.

Esta expressão condenatória pode ser encontrada no decorrer de toda a Bíblia, onde os falsos adoradores se tornam iguais aos seus falsos deuses, o que implica dizer que, ou para o bem ou para o mal o adorador se identifica com o ídolo que adora.

Não sem razão Deus convoca o profeta para denunciar a idolatria que havia se estabelecido no meio do povo de Israel, porquanto, já lhes havia sido ensinado claramente os efeitos nefastos dessa prática reprovável, seus antepassados haviam sido alertados desse perigo logo nos primeiros tempos de sua saída do Egito com o episódio do bezerro de ouro (Ex 32.1-6).

A idolatria nesse caso específico, foi tão proeminente conforme revela a associação com o nome de Yahweh (v.5), que por muitos anos ainda se viu os efeitos nefastos dessa prática no meio de Israel (1 Rs 12.28), sendo, neste cenário que Isaias é chamado para proclamar as verdades divinas ao povo.

Por aqueles tempos, eles estavam se tornando a mesma coisa que os deuses que adoravam e isto estava destruindo aquela nação. A resposta de Deus para essa situação, se dava inicialmente pelo envio do profeta para proclamar sua mensagem, revelando que o arrependimento vem pelo correto entendimento dessa mensagem. A Missio Dei, é entrementes, a providência divina para os povos que estão presos em suas idolatrias, de modo que a relevância dessa Missio Dei está presente em todos os momentos da história desde quando o homem caiu em desgraça diante de Deus.

Portanto, a providência divina para combater a idolatria, é antes de tudo a proclamação da verdade bíblica, não são movimentos eclesiásticos ou atividades concomitantes, é anunciar o evangelho entre as nações, e isto é tarefa da Missio Dei.

[1] BOSCH, David J. Missão Transformadora. p. 37

[2] OSWALT, John. Comentário do Antigo Testamento, 2011. Vol. 1, p. 161

Pintura – Profeta Isaías, Antonio Balestra (1666–1740)

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